Joanna Moura

É publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade

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Joanna Moura
Descrição de chapéu Todas Beleza

Sofrimento não deve ser pedágio para beleza

Eu cresci acreditando nisso e, sinto admitir, nenhuma parte do meu corpo saiu ilesa dessa ideia masoquista de elegância

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Eu tinha oito anos quando ganhei a minha primeira Melissa, aquela que era febre no início dos anos 1990, a original com o plástico transparente moldado de forma a imitar um trançado. O presente foi resultado de uma insistência quase demoníaca da minha parte. Minha mãe resistiu como pôde, com o argumento bastante razoável de que não era possível que alguém que morava numa cidade quente como Salvador pudesse, em sã consciência, querer usar uma sandália toda fechada feita de plástico. "Imagina a suadeira que isso vai dar no pé, menina!"

Minha insistência venceu e, em alguma data comemorativa que agora me escapa à memória, tive a felicidade de rasgar um embrulho e encontrar ali dentro exatamente o que havia passado meses pedindo.

Usei a sandália nova já no dia seguinte. No entanto, uma hora depois de sair de casa, aos prantos, fui obrigada a tirá-la dos pés e andar descalça pelo restante do passeio. O motivo: a combinação do plástico e do suor roçando na pele delicada do peito do pé tinha causado tantas bolhas que não haveria band-aid capaz de cobrir.

Ao longo da minha vida confesso ter muitas vezes tentado promover a paz entre meus enormes, porém delicados, pés e as tais sandálias plásticas que tão confortavelmente calçavam pés alheios, frequentemente tolerando uma bolha ou outra em nome do estilo.

Fotografia mostra um espartilho branco, com babados, em um manequim; o fundo da foto é preto
Adriano Vizoni/Folhapress

O tempo passou e era de se imaginar que me tornasse menos afeita aos sadismos aos quais nos impomos em nome da moda. Bobagem… Aprendi apenas a guardar o sofrimento para os momentos em que ele fosse mais necessário. O caminho para o trabalho, por exemplo, era percorrido com sapatilhas nos pés. Mas bastava chegar no elevador do escritório que as sapatilhas sumiam de cena e um novo par iniciava seu turno. Meus pés carregam até hoje as marcas dos sapatos altos demais, dos bicos finos demais, dos couros duros demais.

"Il faut souffrir pour être belle" já diziam os franceses. Em bom português, trata-se da ideia de que beleza e sofrimento estão intrinsecamente ligados. De que para ser bela, ou para estar bela, é necessário suportar, em alguma dose, o sofrimento.

Eu cresci acreditando nisso e, sinto admitir, nenhuma parte do meu corpo saiu ilesa dessa ideia masoquista de elegância. Das orelhas rasgadas por brincos pesados, passando pela barriga marcada pelo elástico de saias apertadas, até os peitos confinados dentro da combinação de materiais mais esdrúxula que a moda já foi capaz de produzir: arame e seda. Haters (que me arrisco afirmar serão, em sua maioria, homens) dirão que trata-se de mimimi. Para estes sugiro experimentar algo parecido, incorporando talvez um suporte de metal dentro de suas cuecas como maneira de tentar conter o efeito da gravidade sobre seus sacos escrotais.

A verdade é que vestir já doeu pra mim. Já apertou. Já machucou. Já fez sangrar. Felizmente, pouco a pouco, fui capaz de me libertar de muitas das amarras masoquistas da elegância. E confesso que ser mãe foi um grande acelerador desse processo. Afinal, não há saia lápis que sobreviva à ginástica necessária para aguentar o ritmo de uma criança de dois anos.

Sim, a maternidade me trouxe necessidades tangíveis que me compeliram a buscar um vestir mais benevolente. Mas foi a revolução interna que chegou junto com meus filhos que me trouxe a clareza sobre quem eu sou e quem quero e posso ser.

Hoje não admito ver minha potência diminuída pelo desconforto físico. Não admito que a dor desvie a minha atenção do que realmente importa. Meu foco agora está no amor a mim, aos meus pés e orelhas e dobras e curvas. Às minhas tetas que, agora libertas de arames, se sustentam no lugar que lhes convém. Meu foco agora está no ser, no viver, no fazer, no transformar. E na formação de uma menina que, se depender de mim, irá crescer sabendo que sofrimento não é pedágio para beleza. E as roupas e sapatos que uso me ajudam a escrever essa história.

Eu não tenho mais tempo para desconforto, e ouso afirmar que estou mais elegante do que nunca.

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