Joanna Moura

É publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade

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Joanna Moura

O relacionamento mais fechado de todos

Tive pena de mim, não por não virar a noite em orgias, mas pela liberdade da qual abdiquei ao colocar dois filhos no mundo

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Pisei para fora de casa como quem sai de um reality show de confinamento, absorvendo com todos os sentidos o caleidoscópio de estímulos do qual havia sido privada por dias que pareceram semanas. Caminhei semi cambaleante pela overdose sensorial, pupilas expandindo e contraindo com as luzes que passavam coloridas, desenhando linhas de neon no ar.

Fora da previsibilidade segura do lar, encontrei uma rua viva e cheia de sons altos e baixos, curtos e compridos, de vozes, passos, motores, buzinas, cachorros e uma ambulância ao longe. Pessoas perfeitamente estranhas passavam sem me perceber, todas muito interessantes simplesmente por serem outras que não aquelas com as quais havia dividido meu isolamento. Quando meus sentidos finalmente conseguiram se acostumar, fui capaz de firmar o passo e respirar fundo. Foi então que senti o cheiro, aquele de tudo e de nada específico. Cheiro de ar frio e fresco do mundo lá fora. Cheiro de liberdade.

Halfpoint/AdobeStock

A semana anterior tinha sido uma grande prova de resistência cuja recompensa ao final era apenas sobreviver e manter vivos os demais colegas de isolamento. Foram sete dias sendo mãe solo de dois, trabalhando sem dormir, dando comida sem comer, tentando manter a calma quando todos em volta gritam suas vontades urgentes. Claro que houve também o êxtase, porque sem ele não há confinado que resista ao confinamento.

Mas o êxtase do isolamento é quase delirante, um alívio disfarçado de alegria que vem das vitórias mais pequenas, essas que os libertos têm como garantias tão banais que nem merecem ser reconhecidas muito menos celebradas: dormir 5 horas seguidas, terminar uma conversa enquanto as crianças brincam sozinhas, chegar no trabalho na hora certa, conseguir riscar duas ou três coisas da longa lista de afazeres.

Sigo andando em direção ao metrô, ainda inebriada pela liberdade conquistada poucas horas antes, com o retorno do pai que, mal chegou do aeroporto, foi convocado a cumprir seu papel e também o meu. Saí de casa às 7 da noite, mas antes aproveitei os créditos matrimoniais adquiridos naquela semana de parentalidade solitária e me tranquei no banheiro para me arrumar com calma.

Há tempos não conseguia entrar num cômodo da casa e trancar a porta, sempre alguém querendo entrar, ou sair, ou pedir alguma coisa, ou querendo companhia. Passei vinte minutos em frente ao espelho, usando utensílios que há muito não tinham função: delineador, pincel de sobrancelhas, batom vermelho. Botei a roupa nova que havia sido confinada junto comigo e fui lá provar da tal liberdade.

O destino era uma festa, dessas em que ouvimos a música que já gostamos e encontramos as pessoas que já conhecemos. Afinal, liberdade sim, mas no conforto do território conhecido pois foi-se o tempo em que eu era dada a aventuras. Eis que lá pelas tantas, numa ida ao bar para um segundo ou terceiro round de bebida, encontrei um casal de amigos que conversavam animadamente com uma terceira pessoa. Parei logo em frente ao grupo, me fazendo notada e interessada na conversa sobre a qual eu ainda não havia ouvido nada. Percebendo minha presença, ambos abriram braços e sorrisos, me apresentaram o terceiro elemento e seguiram a história do ponto em que haviam parado. "Daí eu tava transando com uma menina enquanto o Mateus tava com outra e a gente se olhou e começou a rir…"

Aqui preciso fazer um disclaimer. Matheus e Vivian são casados há muitos anos, mas há algum tempo resolveram abrir a relação. E, antes que os céticos e conservadores se manifestem, me sinto na obrigação de me colocar como testemunha ocular de que não, eles não estão em crise. Pelo contrário, é claro como o dia o amor que esses dois têm um pelo outro. Há entre eles uma combinação singular de afeto, honestidade e confiança que os permitem quebrar as regras que a sociedade os impôs e estabelecer os seus próprios pactos. E nesse contrato que eles não precisaram assinar está escrito que ambos são livres.

Meu drinque chegou e ali permaneci por uma boa meia hora, hipnotizada, ouvindo sobre suas aventuras e desventuras. De causos de dates falidos a encontros com estranhos que, depois do sexo, viraram amigos. De orgias pontuais a longos relacionamentos paralelos. De múltiplas bocas beijadas no Carnaval em Salvador a luas de mel românticas a dois. De festas sem quase nenhuma roupa, a jogos de baralho em casa inteiramente vestidos. Histórias de um relacionamento aberto para muitas coisas, para o diálogo, para os questionamentos, para o novo, mas especialmente para acolher desejos, sejam eles um pelo outro ou por outrem.

A conversa chegou ao fim quando a música aumentou o ritmo e compeliu todos a migrarem de volta para a pista. Eu dancei como há muito não dançava, permitindo que meu corpo fizesse o que queria fazer, sentindo a música de olhos fechados e poros abertos. De vez em quando, me pegava procurando Matheus e Vivian pela pista de dança, meu olhar atraído pela curiosidade de saber se os dois estariam aproveitando a noite tanto quanto eu. Ou mais.

Voltei para casa horas depois, novamente semi cambaleante, inebriada pelas múltiplas doses de gin e pelo êxtase de ter vivido a noite que vivi. Mas enquanto caminhava sozinha pelas ruas agora vazias não pude evitar a comparação da minha parca liberdade com aquela tão abundante dos meus amigos. Por um momento tive pena de mim. Não porque gostaria de preencher parte das minhas noites (ou dias) com orgias, ou porque desejava ser livre para deslizar para a direita ou para a esquerda na tela do meu telefone, mas porque cairia bem conseguir tomar banho sozinha de vez em quando. E aí fica difícil não pensar no tamanho da liberdade que abdiquei quando coloquei dois seres no mundo que dependem de mim para existir. Não pode haver relacionamento mais fechado do que esse.

Os dois pequenos já dormiam quando cheguei em casa. Tomei um banho, me preparei para dormir e, livre para me entregar ao sono na minha própria cama, decidi passar primeiro no quarto deles para ver como estavam, ouvir a respiração de cada um, cobrir os pés que porventura tivessem escapulido por debaixo das cobertas. E foi deitada na cama da minha filha, fazendo carinho em seus cabelos, correndo risco que ela acordasse, que caiu a minha ficha de que esse cativeiro por vezes difícil no qual me encontro boa parte do tempo, é também até certo ponto voluntário. E um dia, lá na frente, já liberta (ou pelo menos em liberdade condicional), sentirei falta dele.

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