Joanna Moura

É publicitária, escritora e produtora de conteúdo. Autora de "E Se Eu Parasse de Comprar? O Ano Que Fiquei Fora da Moda". Escreve sobre moda, consumo consciente e maternidade

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Joanna Moura
Descrição de chapéu Todas

Você quer seguir adiante com a sua gravidez?

E cá estava eu, sentada diante de um profissional de saúde, vislumbrando a possibilidade de escolher

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Descobri a minha primeira gravidez na nona semana. No dia seguinte, liguei para a clínica pública local e marquei uma consulta para a primeira data disponível, que calhou de ser uma semana depois.

No dia da consulta, meu marido e eu andamos de mãos dadas os seis quarteirões que separam nossa casa da clínica. A cena era de filme cliché de romance. O casal feliz, andando pela rua num belo dia de outono, sentindo a brisa fria de Londres no rosto, apreciando o cair das folhas já alaranjadas, o cenário servindo como a metáfora perfeita da vida em transformação e do prenúncio de um novo capítulo que chegaria junto com a primavera.

No caminho, como bons e ignorantes pais de primeira viagem, nos perguntamos o que aconteceria na consulta. Certamente ele pediria exames que confirmassem a gravidez. Talvez já marcasse o primeiro ultrassom. Nos indicaria livros para ler, nos perguntaria que tipo de parto gostaríamos de ter.

Lembro perfeitamente da ansiedade ao entrarmos na sala simples onde o médico do NHS, o sistema público de saúde do Reino Unido, nos aguardava sentado do outro lado da mesa.

"Estamos grávidos", eu disse em inglês ao sermos perguntados o que nos trazia ali. Ao que o médico respondeu: "E a senhora gostaria de seguir adiante com a sua gravidez?".

A pergunta me pegou de surpresa e levei alguns segundos para entender o que ela queria dizer, para compreender claramente o subtexto do indagamento apresentado.

Na Inglaterra, o aborto é permitido até as 24 semanas de gestação. E isso não vem de hoje. A primeira versão da lei data de 1967. É portanto de conhecimento público que, neste país, o aborto é um direito da mulher e, sendo assim, dentro das condições estabelecidas pela lei, é oferecido de forma gratuita pelo sistema público de saúde.

Mas isso tudo eu já sabia antes mesmo de adentrar o consultório naquela manhã de outono. O que surpreendeu na pergunta do médico sentado à minha frente não foi seu conteúdo, mas o simples fato dela ter sido feita.

É que apesar desses meus quase oito anos residindo em Londres, eu nasci e me criei no Brasil, esse nosso país que ostenta uma das legislações mais rígidas do mundo no que diz respeito ao aborto, esse país em que mulheres e meninas são perseguidas por buscarem o procedimento nos pouquíssimos casos em que a lei ainda lhes oferece essa possibilidade, em que vítimas de estupro são revitimizadas, em que médicos são pressionados a não realizar o procedimento mesmo nos casos em que estão apenas honrando seu compromisso com a saúde da mulher. Um país em que a possibilidade de escolha quase nunca nos é dada.

E cá estava eu, sentada diante de um profissional da saúde pública, sendo oferecida a mim, assim de bandeja, a possibilidade justamente de escolher. E, mais do que isso, ser colocada como a única voz capaz de tomar essa decisão. Porque, para além da pergunta, nada me comoveu mais nesse dia do que ver esse médico, virar seu corpo e seu olhar na minha direção e direcionar a pergunta para mim e apenas para mim.

"Você deseja continuar grávida?"

Como quem diz: minha cara, vocês não estão grávidos. É você quem está. Este corpo que gesta é seu e portanto essa decisão é sua e apenas sua.

"Sim", eu lhe respondi, tomada por uma sensação de absoluta dignidade vinda do entendimento de que eu de fato tinha poder de escolha, e que o "não" seria uma resposta igualmente possível e plausível.

E é a partir da experiência dessa dignidade que olho com revolta o retrocesso em curso neste país em que nasci. Neste lugar em que homens legislam sobre os nossos corpos e desenham futuros muito presentes em que estupradores tem mais direitos sobre nossos ventres do que nós mesmas. Um país em que, sem sermos perguntadas, gritamos nossas respostas, mas ninguém parece nem querer ouvi-las.

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