João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu

Dados dos utilizadores do Facebook ilegalmente usados. Choque!

É preciso lembrar que as pessoas partilham voluntariamente seus dados nas redes

Teste de personalidade permitiu acesso indevido ao perfil de 50 milhões de usuários da rede social - Daniel Leal-Olivas/AFP

Mais um escândalo com o Facebook: 57 milhões de usuários da rede (o número é uma estimativa, ninguém sabe com rigor) foram usados por empresa britânica para fins de propaganda política.
 
Quando li a notícia, lembrei imediatamente o título de uma crítica mordaz a um livro antigo de Martin Amis (“Koba the Dread”) que nunca mais esqueci: “Stalin was bad. Shock!” Seria possível usar as mesmas palavras para comentar o caso: “Dados dos utilizadores do Facebook ilegalmente usados. Choque!”
 
Mas deixemos o cinismo de lado. Porque no escândalo corrente é preciso relembrar um fato e fazer uma pergunta. Fato: as pessoas partilham voluntariamente os seus dados e a sua privacidade nas redes. Pergunta: por que motivo o fazem?
 
Eu sei, eu sei: não é elegante lembrar as coisas óbvias. É mais proveitoso pintar Mark Zuckerberg com as cores do demônio.
 
Longe de mim defender o sr. Zuckerberg, cuja megalomania e irresponsabilidade nunca me enganaram (já lá vamos). Mas o poder que esse rapaz concentrou foi culpa exclusivamente nossa. Fomos nós que transformamos a “privacidade” —a maior conquista da civilização ocidental— em produto barato e até dispensável.
 
Um pouco de história ajuda sempre: o que hoje entendemos por privacidade —um espaço pessoal, longe do olhar e da interferência de terceiros— tem raízes fortemente cristãs (dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César marca uma diferença importante com o mundo greco-latino).
 
Mas essa preocupação com as “fronteiras” da existência humana foi secularizada pela modernidade liberal: o liberalismo “político” —não confundir com o “neoliberalismo” e outras caricaturas do gênero— teorizou e defendeu um conceito de liberdade onde podemos agir (ou até não agir) sem sermos intencionalmente coagidos por terceiros, como escrevia Isaiah Berlin.
 
Essa “privacidade” foi também defendida eloquentemente pelo futuro premiê William Pitt, em 1763, no Parlamento londrino. A casa de um homem pobre pode ser frágil e a sua cobertura insuficiente, dizia ele. Para acrescentar: a tempestade pode entrar mas o rei não pode.
 
Por outras palavras: a “privacidade” era entendida como uma barreira contra os poderes arbitrários —do rei, do premiê, da multidão. O seu valor político era vital e por isso inegociável.
 
Mas a privacidade tem outras funções capitais na vida de qualquer ser humano. Como nos lembra Raymond Wacks no seu “Privacy” (um pequeno livro da Oxford University Press que é mais relevante do que nunca), sem privacidade é impossível cultivar o nosso sentido de autonomia (grande parte dos problemas da chamada “Geração Z” assenta precisamente aqui: nessa incapacidade dos mais jovens para estarem sozinhos).
 
Sem privacidade, não temos espaço nem recursos para qualquer “liberdade emocional” (“chorar as nossas dores” não é apenas poesia; é sobrevivência).
 
Sem privacidade, não conseguimos remover as nossas máscaras —marido, pai, trabalhador etc.— para repousar no esquecimento momentâneo.
 
Sem privacidade, conclui o autor, dificilmente teremos intimidade digna desse nome. A verdadeira intimidade ainda pressupõe proteção.
 
Acontece que tudo isso conheceu uma rápida erosão e existem várias causas que ajudam a entender porquê. Fico apenas por duas.
 
A primeira delas lida com mudanças culturais no pós-Segunda Guerra Mundial: a partir da década de 1960, velhas noções de “decoro”, “pudor” ou “respeitabilidade” foram questionadas e descartadas pela libertação em curso.
 
(Entenda, leitor: a minha costela libertária aplaude certos desafios à “ordem” estabelecida. E admito, sem hesitações, que a cortina da privacidade também serviu para ocultar certos crimes privados onde as mulheres foram as principais vítimas. Nesse sentido, o rei pode ficar à porta —mas, às vezes, é importante que a polícia entre na casa.)
 
Mas é preciso não jogar fora o bebê com a água do banho: a nossa privacidade não é uma “invenção burguesa” e “reacionária”. É um balão de oxigênio sem o qual a nossa vida física e mental é um destroço.
 
Quando estudos diversos garantem que as “redes sociais” podem não ser saudáveis para o equilíbrio psíquico da espécie, a minha vontade é voltar a repetir o mesmo mantra sobre o livro de Martin Amis: “Redes sociais causam ansiedade e depressão. Choque!”
 
Sim, o “espírito do tempo” favoreceu uma visão da privacidade como conceito arcaico e descartável. Mas é preciso lembrar também o contributo que Mark Zuckerberg deu para o processo.
 
Agora, com a casa em chamas, o sr. Zuckerberg mostra a sua dor e promete medidas severas para proteger os usuários. Mas eu ainda me lembro desses tempos românticos em que Zuckerberg era o primeiro a defender que a privacidade já não era tão relevante como no passado.
 
As “normas sociais” evoluem, dizia ele em São Francisco, corria 2010; as pessoas já não têm uma “expectativa de privacidade” (sic). Na sabedoria de Zuckerberg, essas “expectativas” eram um freio à criatividade e à mudança. (E também ao crime —como os liberais clássicos sabiam bem.)
 
Resta a pergunta final: será que a maioria vai continuar a trocar a sua privacidade pelos prazeres efêmeros e narcísicos que as redes sociais oferecem?
 
Honestamente, leitor: será preciso responder?

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