João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu

Mãe Rússia

Diretor de 'Sem Amor' mostra que hoje na Rússia o único amor que existe é o amor-por-nós-próprios

Ilustração João Pereira Coutinho
Ilustração: - Angelo Abu/Folhapress

Quem deseja um retorno à ditadura militar? Tempos atrás, fiz essa pergunta a um ilustre colega desta Folha. Na minha inocência, pensava que os brasileiros nostálgicos eram gente de 70 ou 80 anos.

O fato de ser português turvou a minha visão das coisas. Saudades de Salazar? Existem, sim, residualmente que seja. Mas não entre as gerações mais novas, aquelas que tratam a Europa e o mundo por tu.

Que nada, disse ele. Os nostálgicos, se a palavra é adequada, são gente que nunca viveu no regime militar. Os nostálgicos sentem nostalgia por algo que nunca conheceram.

Faz sentido. Na Europa, o entusiasmo pela extrema esquerda e pela extrema direita é coisa de jovens. Não apenas porque os jovens são mais impulsivos e ignorantes em assuntos políticos —mas porque as memórias do comunismo e do fascismo são inexistentes para eles.

E quem fala da Europa fala da Rússia. Nas vésperas das eleições, o Wall Street Journal publicou uma matéria exemplar sobre os grandes apoiantes de Vladimir Putin. Quem são eles?

Os jovens, claro. Dizem os estudos que, entre os 18 e os 24 anos, 87% apoiam Putin. Motivos? Basicamente, o pessoal considera que o negócio da era Putin foi justo: não têm liberdades políticas, é certo; mas, em troca, têm paz, estabilidade e shoppings.

Para sermos rigorosos, a maioria nem pensa muito em política; a prioridade está nos assuntos materiais, e não metafísicos. Se existem empregos, dinheiro e os confortos tecnológicos do Ocidente, a liberdade pode esperar. Aliás, para que serve a liberdade?

Um filme russo ajuda a responder a essa questão secular. Falo de "Sem Amor", mais uma obra-prima de Andrey Zvyagintsev, indicado neste ano ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

Zvyagintsev já tinha mostrado, com "Leviatã", que o cinema russo estava vivo e ativo. Mas o diretor é um caso singular no cinema contemporâneo porque ninguém como ele consegue retratar a crise moral da Mãe Rússia.

No filme, encontramos um casal —Zhenya e —Boris em processo de divórcio. Os dois têm um filho, Alyosha, de 12 anos. Quem ficará com a guarda da criança?

Normalmente, casais com filhos a caminho do divórcio brigam por esse triunfo. Mas, no caso de Zhenya e Boris, a briga é outra: nenhum deles quer Alyosha por perto e, nas discussões regulares, o orfanato é o destino mais provável para o rapaz.

"Eu também quero seguir em frente", diz a mãe, que sonha com uma segunda oportunidade na companhia do novo namorado, um homem mais velho, "com dinheiro", que "não fuma e bebe pouco". O pai já seguiu em frente: espera um outro filho de uma outra mulher.

Alyosha é um empecilho. E ele sabe disso: quando os pais trocam insultos, ele escuta tudo atrás da porta. Depois, no silêncio da noite, vai chorando o seu destino. Aqueles pais gostariam que ele não existisse. Ironicamente, Alyosha faz-lhes as vontades, desaparecendo sem deixar rastro.

Sim, numa leitura superficial, o título da obra —"Sem Amor"— refere-se à radical ausência de afeto parental. Mas Andrey Zvyagintsev vai mais longe: na Rússia de hoje, o único amor que existe é o amor-por-nós-própriosum egoísmo grotesco e literalmente desumano que é a negação do amor verdadeiro.

Não é por acaso que, ao longo do filme, o celular, sempre de última geração, é elemento onipresente. E, com ele, "selfies" sobre "selfies": aquela gente é incapaz de amar alguém, exceto a sua própria vaidade.

E quando a realidade política se intromete nessa orgia diabólica —notícias na rádio, reportagens na TV— é apenas como ruído de fundo.

A liberdade política pode parecer um luxo dispensável quando existem luxos indispensáveis: celulares, roupas de grife ou shoppings.

Mas a liberdade, tal como o amor e outras realidades intangíveis e incomensuráveis, torna-nos adultos e humanos —e não eternas crianças, fechadas em suas creches e entretidas com seus brinquedos. Trocar liberdade por uma ilusão de segurança e diversão é uma forma de suicídio interior.

Mas não apenas de suicídio: é também um convite para o triunfo da tirania. Foi há quase 200 anos que Alexis de Tocqueville, olhando para a democracia americana, alertou para as suas principais ameaças. Como o materialismo e o individualismo excessivos: a febre da posse afastaria as pessoas da vida pública —e, mais ainda, de uma vida moral capaz de as elevar a um patamar de existência superior. No fundo, o sonho de qualquer candidato a ditador.

Os jovens de Putin e os pais do filme são um sonho tornado realidade.

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