João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Buracos de coelho

Devemos lidar com fantasistas da mesma forma como lidamos com animais assustados

Ilustração
Angelo Abu/Folhapress

Como lidar com pessoas que acreditam mesmo em teorias da conspiração? Tenho pensado no assunto porque tenho lidado com ele. Regularmente.

Familiares ou amigos, que eu julgava racionais, ou semirracionais, dão mostras crescentes de terem sido engolidos por esse mundo. O processo nem sempre é imediato. Em certos casos, consigo detectar uma evolução de encontro para encontro.

No início, a conversa soa normal, sem nenhum sinal de alarme. Mas o meu interlocutor introduz uma leve variação, normalmente sob a forma de um "e se"?

Exemplo: sim, ele acredita que as doenças fatais podem acontecer sem nenhuma causa definida. Mas alguém lhe disse, ou ele leu, ou ele escutou, que os governos sempre se preocuparam em controlar demograficamente as populações, até por razões econômicas e securitárias.

A insinuação não avança muito mais porque o objetivo é óbvio: ver se eu faço parte do clube. É como certos membros de sociedades secretas que têm gestos ou palavras de identificação mútua.

Não alimento esses apetites: respondo com uma piada e ele —sim, normalmente é masculino— ri também, desviando a conversa para outras paragens.

Quando o encontro pela segunda vez, o vírus conspirativo já fez maiores estragos: os governos controlam o crescimento populacional e despejam químicos na água encanada. Por isso ele deixou de bebê-la (só em garrafa).

Em tom jocoso, pergunto se ele não teme também a contaminação da água da própria garrafa. Ele não ri. "O assunto é sério." E depois aconselha bibliografia —na internet, claro— para que eu me proteja.

Ao terceiro encontro, não há diálogo possível. Da política à economia, da cultura à medicina, tudo o que eu penso saber está errado.

E se tentamos discordar com argumentos plausíveis, nada feito: ele sorri, como se falasse com uma criança, e depois regressa à sua caverna onde convive diariamente com a Verdade.

O exemplo descrito não é ficcional. Aconteceu. Como acontece com outras figuras que a internet devorou e regurgitou.

A política leva clara vantagem nessa copa demente. E, em períodos eleitorais, a regressão mental é impressionante. Um candidato nunca é um candidato —um pobre diabo movido por ambição ou narcisismo.

É sempre um personagem de filme com poderes malignos —ou, em alternativa, uma marionete de quem exerce esses poderes na sombra.

Eu, com 20 anos de jornalismo, asseguro que os políticos são sempre mais imbecis do que eles pensam; e, quando conspiram, são toscos e grosseiros, sem a sofisticação das teorias cibernautas, mais próprias de um roteiro de James Bond. Mas é pregar no deserto.

Felizmente, o jornalista Mick West vem em meu socorro. West lança nesta semana um aguardado livro nos Estados Unidos sobre o assunto ("Escaping the Rabbit Hole") —e, em artigo para a Salon, levanta o véu para explicar resumidamente como lidar com fantasistas.

O humor ou a chacota estão fora de questão. Um fantasista, escreve West, entrou no "buraco do coelho" —um mundo distorcido e retorcido, como na história de "Alice no País das Maravilhas", na qual a lógica comum deixou de fazer sentido.

Se queremos resgatar o amigo do buraco, devemos respeitar primeiro a situação em que ele se encontra: viver do outro lado da realidade provoca danos sérios na bolsa, na saúde e na vida social dele.

Depois, é preciso saber de que falamos quando falamos de teorias da conspiração. A palavra fundamental é "prova". Uma fantasia é improvável (no sentido empírico da palavra) e muitas são contrárias a provas irrefutáveis. Que fazer?

O caminho, pelo visto, não passa por esmagar o fantasista com toneladas de fatos. O método aconselhado por West é lidar com o fantasista da mesma forma como lidamos com animais assustados: reganhando a confiança deles.

Isso passa por tolerar a bosta que eles falam e, de vez em quando, plantar uma pequena dúvida, um pequeno comentário, uma pequena observação nas suas narrativas. Ser paciente é mais importante do que ser insistente.

Depois, se a massa cerebral não estiver completamente corrompida, talvez o fantasista comece a questionar o buraco onde se encontra. Só ele pode sair do subterrâneo.

Concordo com West, agradeço os seus conselhos. E, decidido a mudar de atitude, envio o seu artigo para o meu amigo da água contaminada.

Foi um erro de entusiasmo. A resposta dele é quase imediata. "Sei quem tu és. Os donos do mundo sempre tiveram os seus soldados."

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