João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Na eutanásia, o direito de morrer pode virar dever de morrer para os pobres

O que dizer sobre o Canadá aplicar a lei que permite terminar com a vida de pessoas a partir de sua classe social?

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A eutanásia costuma render bons debates. Por eutanásia, entenda-se: o procedimento médico que termina com a vida do doente.

Mas o que dizer do artigo de Yuan Yi Zhu para a Spectator sobre a generosidade do Canadá na aplicação da lei que permite eutanasiar os mais pobres do país?

Dito assim, parece piada. De certa forma, é: de mau gosto. Conta o autor que, em 2016, o parlamento canadense aprovou a lei que permite a eutanásia para todos aqueles que sofrem de doença terminal e cuja morte é "razoavelmente previsível". Até aqui, nada de novo.

Linha vermelha e ziguezagueada de um eletrocardiograma, depois do terceiro batimento, converte-se em uma linha reta, que desemboca em um labirinto sem fim
Ilustração publicada em 2 de abril - Angelo Abu

Cinco anos depois, o mesmo parlamento abandonou o "razoavelmente previsível" e a condição "terminal" da doença. A eutanásia passou a ser possível, também, para quem é portador de doença ou deficiência que não pode ser aliviada de uma forma que o indivíduo considere "aceitável".

É aqui que o "slippery slope" —declive escorregadio, em tradução literal, e que indica uma consequência não prevista na intenção original— começou a fazer as suas vítimas, sobretudo entre os mais pobres.

Conta Yuan Yi Zhu que há casos de doentes (pobres) que foram pressionados por médicos e enfermeiros para que abreviassem a sua estada terrena. Os cofres públicos agradeciam.

Outros, na mesma condição de penúria, nem precisaram de incentivo e avançaram diretamente para a porta da saída. Falamos de pessoas portadoras de deficiência ou até com alergias incapacitantes.

Valerá a pena viver quando não há dinheiro para tratar da saúde? Não vale, terão concluído.

Para os defensores da lei, no Canadá e não só, falamos sempre de "autonomia" individual. Mas será que falamos mesmo?

Tempos houve em que as almas mais progressistas tinham cuidado no uso da palavra. "Autonomia", diziam elas, não poderia ser confundida com o conceito negativo de liberdade, segundo o qual eu sou livre (e autônomo) quando posso agir sem ser intencionalmente coagido por terceiros.

Exemplo: se eu quero viajar para o Brasil e não existe nenhuma autoridade policial que me impede de o fazer, a minha autonomia foi respeitada.

Uma ilusão, contrapunham os originais progressistas: se eu não tenho dinheiro para viajar para o Brasil, é indiferente saber se as fronteiras estão abertas ou fechadas. Eu simplesmente não sou livre e autônomo no sentido mais profundo.

O mesmo vale para a educação ou para a saúde: os indivíduos continuarão privados da sua autonomia se viverem vidas de ignorância ou doença.

Ou, como afirmava Herbert Samuel (1870 - 1963), "não existe verdadeira liberdade se um homem está confinado e oprimido pela pobreza, por horas excessivas de trabalho, pela insegurança da sua existência". E concluía: "Para se ser verdadeiramente livre é preciso estar liberto de tudo isso."

Eis o ponto desses primeiros progressistas: a autonomia individual depende do bem-estar da comunidade. Pensar o contrário é uma rendição ao darwinismo social em que só os mais ricos e fortes têm vez.

A experiência canadense, tal como relatada por Yuan Yi Zhu, é a prova de como o novo progressismo é muito semelhante ao darwinismo social. Quem tem dinheiro tem acesso a cuidados médicos e paliativos. Quem não tem olha para a eutanásia com outros olhos.

Nesse contexto, afirmar que os indivíduos são sempre os melhores juízes em causa própria revela um cinismo arrepiante.

Como negar que aquilo que um indivíduo deseja é também determinado pelas condições materiais, familiares e psíquicas em que se encontra?

Como negar que serão sempre os mais pobres que se encontram em situação de vulnerabilidade?

E estamos apenas no início, escreve Yuan Yi Zhu: no próximo ano, a doença mental será razão suficiente para justificar a morte, o que não deixa de ser um paradoxo. Como sustentar que alguém psiquicamente diminuído está na plena posse das suas faculdades mentais para tomar uma decisão terminal?

Nas discussões sobre a eutanásia, as atenções estão sempre concentradas no "direito de morrer". Mas não pode existir discussão séria que ignore a possibilidade do "direito de morrer" se converter no "dever de morrer".

Os mais pobres sabem disso.

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