João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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O inferno são os outros, mas em "Os Banshees...", a ausência deles também

Personagens do longa de Martin McDonagh habitam esses extremos

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Camaradas, amigos, irmãos: ainda há filmes como "Os Banshees de Inisherin", que estreia nesta quinta no Brasil. É como se alguém tivesse ressuscitado Beckett e Ionesco, misturando ambos em Martin McDonagh, o roteirista e diretor da obra.

Estamos na Irlanda, em 1923. Data importante. A guerra civil ainda corria por aquelas bandas, embora os habitantes de Inisherin, uma pequena ilha onde nada acontece, apenas tenham conhecimento do fato pelo som distante das explosões.

Em teoria, Inisherin deveria ser o paraíso. Na prática, há uma outra guerra, muito pouco civil, que vai rebentar na pacatez da comunidade.

Pádraic (Colin Farrell) e Colm (Brendan Gleeson) são amigos de longa data. Bebem juntos no pub. Conversam. Partilham a vida.

Mas chega um dia em que Colm comunica a Pádraic que já não quer mais ser amigo dele. Pádraic, um simplório de bom coração, não acredita nas palavras de Colm. Como acreditar?

Colm tenta explicar-se: Pádraic é "maçante" e ele, Colm, na última fase da vida, quer dedicar-se à música, compondo peças para violino que, na cabeça dele, serão o seu passaporte para a eternidade. Não tem mais tempo a perder.

Pádraic recusa o afastamento. Mas Colm fala a sério. Tão a sério que está disposto a cortar os dedos das suas próprias mãos se Pádraic persistir em não respeitar a decisão.

É o princípio da tragédia, ou da comédia, porque ambas convivem harmoniosamente num texto brutal e lírico sobre a natureza da amizade. Por que motivo a valorizamos tanto? E por que motivo Pádraic entra em crise existencial quando o seu amigo de sempre desaparece?

Em livro recente, com o título "Life is Hard", o filósofo do MIT Kieran Setiya se ocupa do tema. Para lembrar como a consciência que temos de nós depende das relações que estabelecemos com os outros.

A amizade é uma condição de identidade. Ou, dito de outra forma, nós só existimos porque os outros nos devolvem os contornos e a substância dessa existência.

Privados de companhia, desaparecemos. Não no sentido físico, como é evidente, mas metafísico: deixamos de ser.

Sim, como dizia Kant, vivemos sempre em estado de ambiguidade nas relações sociais. Somos seres de uma "sociável insociabilidade": precisamos dos outros e tememos depender deles. Queremos estar com eles e não nos queremos diluir neles.

Mas vidas normais tentam um equilíbrio, evitando os extremos: de um lado, o inferno são os outros (como diria Sartre); do outro lado, o inferno é a ausência dos outros (como lembrava Victor Hugo).

Os personagens de "Os Banshees de Inisherin" habitam esses extremos. Colm sente-se sufocado pelo amigo, temendo perder o tempo que lhe resta em tardes de esquecimento.

Colin Farrell e Brendan Gleeson em cena de 'The Banshees of Inisherin', de Martin McDonagh
Colin Farrell e Brendan Gleeson em cena de 'The Banshees of Inisherin', de Martin McDonagh - Divulgação

Mas a escolha radical de Colm nasce de um desespero mais profundo: o desespero de quem suspeita que a vida lhe passou ao lado.

O temor de Pádraic é de outra ordem: ele perde o seu compasso pela privação fundamental. Ele se transforma em outro Pádraic: cínico, amargo, violento. Irreconhecível para terceiros. Irreconhecível até a seus próprios olhos. Pádraic perdeu o espelho da sua identidade.

Um filme desses, com um roteiro magistral desses, não seria possível sem os atores que o servem –Colin Farrell, Brendan Gleeson, mas também Kerry Condon e Barry Keoghan, todos indicados a um Oscar.

Sobre os dois primeiros, nada a acrescentar: Farrell e Gleeson, que já tinham contracenado em filme anterior de Martin McDonagh ("Em Bruges"), são memoráveis.

Atenção, o trecho abaixo contém spoiler.

Mas Kerry Condon e Barry Keoghan dão corpo e voz a uma das melhores sequências do filme: quando se encontram junto ao lago e Dominic (Kheogan) declara o seu amor a Siobhán (Condon).

Camaradas, amigos, irmãos: se vocês não sentirem o coração encolher nesse diálogo, é porque definitivamente já não têm um.

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