João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu machismo

No mundo pós-MeToo, a relação entre os sexos se define por psicose

De acordo com o filme 'Não se Preocupe, Querida', todos os homens querem ter uma donzela 'bela, recatada e do lar'

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Todos os homens querem mulheres obedientes, que nunca questionem a sabedoria, as ordens e os conselhos dos seus machos. Todos os homens querem mulheres que sejam fadas do lar, limpando, cozinhando e engomando com um sorriso de felicidade perpétua.

Todos os homens querem mulheres sexualmente disponíveis, 24 horas por dia, sete dias por semana.

Todos os homens querem mulheres que, em ocasiões especiais, possam oferecer aos seus maridos uma stripper profissional. Todos os homens sentem horror com mulheres emancipadas porque sabem que a igualdade é o caos.

Todos os homens, se não estiverem mentindo (e os homens mentem sempre), querem retornar aos anos 1950 e ter uma donzela "bela, recatada e do lar". Todos os homens, no fundo, querem ser Michel Temer.

Imagem baseada em cena do filme citado na coluna, o “Don’t Worry, Darling”, em que uma mulher quase nua aparece assentada em uma taça de bebida gigante.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Folhapress

E, se o leitor ou a leitora disser que não, que é absurdo, que é ridículo, que o cronista perdeu a cabeça, que está brincando, ou talvez não, é porque o leitor, ou a leitora, não assistiu a "Não se Preocupe, Querida", novo filme de Olivia Wilde, disponível na HBO Max.

O filme apresenta o supremo sonho masculino, segundo a senhora Olivia Wilde: estamos na década de 1950 e Alice vive no país das maravilhas.

O país dá pelo nome de Victory, o sol brilha sempre e Alice não pode estar mais feliz, preparando o café da manhã (para ele), limpando o banheiro com entusiasmo olímpico (para ele), cheirando com deleite as camisas que lavou (para ele).

E, quando ele finalmente chega, depois de um dia de trabalho, Alice está arrumada, perfumada, com um drinque numa mão e o apetite sexual de uma ninfomaníaca em crise de abstinência.

Alice não é caso único. Todas as mulheres, em todos os lares, são cópias perfeitas umas das outras. E o macho tóxico, assistindo ao filme e salivando como um velho demente, só tem uma pergunta na cabeça: "Onde posso comprar uma passagem para Victory?".

Infelizmente, talvez Victory não passe de uma ilusão, de um engano, de um projeto sinistro para que os homens mantenham as mulheres em estado de servidão.

Pelo menos, Alice começa a acreditar que sim, seguindo pistas bizarras, incongruências, meias-verdades. É o adeus à janta e às trepadas heroicas. O marido, compreensivelmente, fica deprimido.

"Não Se Preocupe, Querida" é uma cópia de uma cópia de uma cópia. Em duas horas de mediocridade, lá temos o ambiente concentracionário (como em "O Show de Truman"), a submissão feminina (como em "Mulheres Perfeitas") e o momento em que Alice começa a questionar a sua existência robótica ("Westworld", claro).

Mas o filme merece ser visto como documento histórico. Ele mostra como a relação entre os sexos, no mundo pós-MeToo, passou a ser definida por uma única palavra: psicose.

Nesse quadro delirante, a relação entre homens e mulheres nunca é marcada por formas distintas de afeto e atração; nunca é um negócio caótico, complexo, singular, em que existem diferentes graus de dependência, que mutuamente se invertem (Olivia Wilde deveria assistir a "Trama Fantasma", um filme adulto de Paul Thomas Anderson).

Para quem vive dentro da psicose, a relação entre os sexos é uma relação de poder, onde as posições se cristalizaram até a caricatura: homens por cima, mulheres por baixo (no sentido metafórico, mas também carnal e literal).

Essa visão das coisas começa por ser uma simplificação infantil dos homens, de todos os homens, como se o sonho do macho fosse reproduzir com uma mulher o tipo de relação que ele tem com o seu cachorro —autoridade absoluta e submissão absoluta.

A mera hipótese de existirem homens que procuram uma relação entre iguais não ocorre à mentalidade psicótica. De igual forma, também não há espaço nessa alucinação para mulheres livres, ousadas, deliciosamente perversas. Todas são, por definição, criaturas passivas, vulneráveis, sem escolha ou autonomia.

Moral da história? Os crimes do MeToo, que são óbvios e lamentáveis, acabaram criminalizando qualquer vínculo emocional entre adultos.

A solidão que corrói a vida moderna e o desinteresse sexual que se espalha entre os mais novos também são manifestações dessa cultura feita de medo, suspeita e frustração.

Retornar a 1950? Com todos os seus defeitos, desconfio que eles e elas se divertiam bem mais do que nós.

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