João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu União Europeia

Muitos progressistas de hoje apenas copiam os espíritos totalitários de ontem

É fundamental um chão comum de decência que escapa aos utilitarismos fétidos do presente

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Amsterdam, três da tarde. Entro no American Book Center, deambulo pelas estantes e lá encontro um livro de ensaios de Milan Kundera, velho companheiro de leituras mil, em tradução inglesa recente.

O título é "A Kidnapped West" e é uma descoberta luminosa: são dois textos curtos, de 1967 e 1983, que nos interpelam diretamente em 2023.

O primeiro texto, sobre a literatura das pequenas nações, é um discurso de Kundera ao Congresso dos Escritores Tchecos. Mas é, sobretudo, um ataque direto ao regime comunista que censurava, ou cancelava, certas obras de arte que não se ajustavam ao código soviético.

Estamos na presença de "vândalos", escreve Kundera, embora o termo se preste a confusões. Um vândalo não é apenas um ignorante simplório que resolve destruir o patrimônio de terceiros.

Os vândalos de que fala Kundera são pessoas educadas (no sentido acadêmico do termo), muito contentes com elas próprias, socialmente integradas, com capacidade de decisão política ou econômica —e que têm por hábito demolir o que não entendem ou aquilo de que não gostam.

O vândalo, ao contrário de uma pessoa civilizada, não aceita que o mundo possa ser diferente da sua própria cabeça. O mundo deve ser idêntico à sua cabeça, o que muitas vezes implica a destruição do que é dissonante.

Cena de 'Fahrenheit 451', filme de 1966 de François Truffaut baseado em livro de Ray Bradbury - Reprodução

E acrescenta Milan Kundera:

"Quando um comitê de cidadãos ou burocratas que gerencia um projeto decreta que alguma estátua (ou castelo, igreja ou uma tília milenar) é inútil e deve ser eliminada, isso é apenas outra forma de vandalismo."

Sorri. Em 1967, os vândalos estavam no poder em Praga, respaldados pelo Kremlin do camarada Brejnev. Hoje, mil kremlins se multiplicaram nas academias e nas bolhas culturais, sem precisarem de um farol em Moscou.

Mas a atitude é a mesma: produzir um mundo "sem história nem memória" –e, por irônico que pareça, sem possibilidade de progresso moral.

Milan Kundera, que sempre se apresentou como um homem de esquerda, tem inteira razão ao lembrar que "nenhuma era progressista foi alguma vez definida pelos seus limites".

Pelo contrário: os avanços históricos e morais só foram possíveis pelo desafio a esses limites, pelo cruzamento dessas fronteiras artificialmente impostas pelos poderes instituídos.

Muitos progressistas de hoje apenas copiam os espíritos totalitários de ontem.

Se esse primeiro texto arrepia pela sua atualidade, que dizer do segundo, que dá título à coletânea?

Foi publicado em 1983, na revista "Le Débat", e começa com uma história notável: em 1956, quando os russos invadem Budapeste para reprimir a revolta popular contra a ditadura comunista no país, o então diretor da Agência de Notícias da Hungria envia um derradeiro telex com as seguintes palavras: "Vamos morrer pela Hungria e pela Europa".

Morrer pela Hungria, pela sua liberdade, pela sua autodeterminação, seria compreensível. Mas pela Europa?

Em Budapeste (Hungria), em 2006, polícia reprime manifestantes que tomaram um tanque T34 da Segunda Guerra que estava sendo usado na comemoração de 50 anos do levante de 1956 contra o domínio soviético no país - Zoltan Kovacs - 23.out.06/AFP

Como observa Kundera, seria impensável que Alexander Soljenítsin, o escritor russo ferozmente anticomunista, escrevesse o mesmo. Os valores que o conservador Soljenítsin defendia não eram propriamente os "valores europeus" que vigoravam em Londres, Paris ou Berlim (Ocidental).

Mas eram esses os valores dos húngaros, e dos tchecos, e dos romenos, e de todos os países do centro da Europa que, temporariamente libertados em 1945 dos nazistas, foram novamente escravizados por Stálin depois de 1945.

Eis a catástrofe: apesar de, culturalmente, serem ocidentais, os povos da Europa Central foram remetidos, politicamente, para a Europa de Leste. Não apenas pelos novos colonizadores, mas pela própria Europa Ocidental, que se esqueceu desse membro da família "sequestrado".

E esqueceu-se por um motivo: durante séculos, a Europa foi partilhando certos valores que lhe conferiam uma unidade. Durante a Idade Média, o cristianismo. Na Idade Moderna, a aspiração do Iluminismo. Havia, digamos assim, uma linguagem comum.

Essa linguagem foi estilhaçada no século 20, e a cultura, entendida aqui em sentido amplo e espiritualmente elevado, foi substituída pelo materialismo, pela banalidade e pelo ruído da cultura de massas.

Concordo com Kundera –até certo ponto. Não sou um nostálgico das unidades perdidas, que podem ser tão perversas (e foram-no) quanto a dispersão moral e epistemológica da pós-modernidade. A Inquisição, o Terror de Robespierre, Auschwitz e o Gulag também são produtos dessa unidade levada até suas últimas consequências.

Mas não nego a importância de um chão comum de decência humana que escapa aos utilitarismos fétidos do presente. Nesse sentido, o ensaio de Kundera evoca, quase de imediato, o destino da Ucrânia diante da invasão brutal de Vladimir Putin.

Os ucranianos, como eles próprios afirmam vezes sem conta, não estão apenas a lutar pela Ucrânia. Também lutam pela Europa, ou seja, pela possibilidade de serem um dia parte de uma comunidade de nações onde a lei, a liberdade e o respeito pelos direitos dos indivíduos não sejam uma quimera.

Nem todos os europeus os escutam. Ou os compreendem. Como se dizia durante a Guerra Fria sobre a Europa Central, a Ucrânia fica longe e sempre fez parte da órbita imperial da Rússia. São outra gente. Não são como a gente.

Quem fala assim já se esqueceu do privilégio em que vive, optando por cálculos mais imediatos sobre o conforto econômico ameaçado. A guerra é um "incômodo", um "despropósito", um "aborrecimento".

Pobrezinhos. Não saberão eles que o privilégio e o conforto só são possíveis porque há valores de liberdade e humanidade que os sustentam?

Os ucranianos, tal como o pobre jornalista húngaro em 1956, sabem disso. Só espero que os primeiros não tenham o mesmo destino do segundo.

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