João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu União Europeia

Convite para Lula discursar no 25 de Abril não foi ideia inteligente

A cerimônia sempre foi instrumentalizada pelo sectarismo político mais primário

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Lula da Silva discursa nesta terça (25) no Parlamento português. Formalmente, será antes da cerimônia oficial que marca os 49 anos do golpe militar que pôs fim à ditadura do Estado Novo. Mas, na prática, não há diferenças: será ele o orador do dia.

As coisas podem correr bem. Espero que sim. Mas, se não correrem e se a direita populista resolver fazer o seu número de circo em pleno Parlamento, haverá responsáveis por essa mancha para além dos populistas.

Não, não é Lula, por maiores que sejam os seus defeitos. Os responsáveis são aqueles que não mediram bem a adequação do convite.

Uma coisa é receber Lula com toda a dignidade que um chefe de Estado merece. Depois de quatro anos de boçalidade bolsonarista, em que as relações entre os dois países estiveram no limbo, era imperioso que Portugal e o Brasil voltassem a conversar.

Outra coisa, bem diferente, é convidar Lula para discursar numa cerimônia que sempre foi instrumentalizada pelo sectarismo político mais primário.

Para entender isso, é preciso lembrar um pouco de história.

Entre vários cravos vermelhos, uma estrela vermelha desponta sobre uma haste, tal qual a dos cravos.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 24 de abril de 2023 - Angelo Abu

No nascimento da democracia portuguesa, existem duas datas fundamentais. A primeira é o 25 de Abril de 1974. A segunda é o 25 de Novembro de 1975.

A primeira data é conhecida: depois de 48 anos de ditadura, o Exército português queria o fim das guerras na África. Mas a "primavera marcelista" –referência às promessas de liberalização que nasceram com o sucessor de Salazar, Marcello Caetano– esbarrava contra uma parede: como promover uma hipotética abertura do regime quando havia uma guerra em curso?

Para Caetano, não era possível. E, não sendo, o Exército, com o apoio de generais do regime, como António de Spínola, pôs em marcha a Revolução dos Cravos.

Mas a segunda data é também importante. O 25 de Abril derrubou a ditadura. Mas o 25 de Novembro derrubou as últimas fantasias revolucionárias de comunistas e de outros radicais de esquerda.

Irmanados com uma parte dos militares, eles pretendiam instalar em Portugal uma "democracia popular", violando, aliás, a vontade democraticamente expressa pelos portugueses nas primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte.

Nessas eleições, os "moderados" (o Partido Socialista de Mário Soares e o Partido Popular Democrático do malogrado premiê Francisco Sá Carneiro) tiveram a maioria dos votos. Os comunistas ficavam-se por uns vexatórios 12,5%.

Estava aberto o caminho para um "processo revolucionário", que passou pela nacionalização da economia; a ocupação de terras; a prisão e tortura de opositores políticos; e, em Novembro de 1975, uma tentativa de golpe que a ala moderada dos militares impediu.

Por outras palavras: um verdadeiro democrata festeja as duas datas. Festeja o fim da ditadura (25 de Abril) e o princípio de uma via segura para a democracia liberal e pluralista (25 de Novembro).

Fatalmente, o folclore político lusitano rapidamente resvalou para uma guerra de datas. O 25 de Abril foi sendo apropriado pela esquerda radical, mesmo que o seu projeto para o país tenha sido derrotado.

A direita, ou uma parte dela, acantonou-se no 25 de Novembro, deixando o 25 de Abril para os seus autodesignados proprietários.

É no meio dessa velha guerra que Lula vai aterrar no Parlamento. O 25 de Abril deveria ser uma data de união para os lusos. Mas o convidado do dia será Lula, uma figura que está longe de ser consensual.

Se dúvidas houvesse, bastaria lembrar as simpatias do presidente por certos regimes autoritários –Cuba, Nicarágua etc.– que trazem más memórias aos portugueses.

Para piorar as coisas, as declarações de Lula na China sobre a Ucrânia atingiram diretamente o país que o recebe. Lula quer a paz?

Chico Buarque com o Prêmio Camões, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa e Lula, no Palácio Queluz - Patricia de Melo Moreira/AFP

Se a Rússia se retirasse do território ucraniano que invadiu, haveria com certeza essa paz. Mas Lula nunca fala disso, preferindo responsabilizar por igual a Rússia, a Ucrânia, os Estados Unidos e a União Europeia.

Pois bem: Portugal pertence à União Europeia, é membro fundador da Otan e tem apoiado, diplomática e militarmente, a resistência ucraniana contra o fascismo imperialista de Vladimir Putin.

Será preciso fazer um desenho para concluir que o convite a Lula para discursar no 25 de Abril não foi a ideia mais inteligente?

E que a melhor forma de não transformar a data em provocação sectária passaria por não jogar mais gasolina sobre o fogo dos radicais?

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