João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

O jogo democrático

Esse modelo político permite descontentamentos sem derramar sangue

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Nesses últimos anos, aposto que houve um momento em que você, leitor esclarecido, pensou assim: "A democracia só gera porcaria mesmo".

Isso aconteceu quando, olhando resultados eleitorais, você viu em quem o povo votou.

Não seria melhor se a democracia fosse substituída por outro sistema, em que ignorantes são afastados e só as elites, ou pelo menos os mais educados, pudessem escolher?

Em artigo para a Democracy os pesquisadores Henry Farrell, Hugo Mercier e Melissa Schwartzberg revisitam esses inconfessáveis pensamentos. Com as vitórias populistas, surgiram obras no mercado que defendiam formas alternativas de decisão política.

Só os mais sábios devem votar, defendeu o cientista político Jason Brennan no iconoclasta "Against Democracy".

Muro com tijolos intercalados por cores diferentes, como um tabuleiro de xadrez.
Angelo Abu

Ou, ligeira variação, só economistas de inclinação libertária, capazes de analisar friamente os custos e benefícios de uma política, poderiam governar, defendeu Bryan Caplan no igualmente inane "The Myth of the Rational Voter".

Em qualquer um dos casos, esses dois tiveram a coragem de defender em público o que você, com alguma vergonha, pensou em privado. Será que Gustave Le Bon tinha razão quando afirmava que um indivíduo, integrado em grupo, "desce vários degraus na escala da civilização"?

Os autores do artigo discordam de Brennan e Caplan —e do clássico Le Bon. E preferem oferecer defesa da democracia que valoriza, precisamente, os méritos da decisão coletiva.

Para começar, os preconceitos que se atribuem às massas também são partilhados pelos "especialistas", defendem os autores. Se assim não fosse, as nossas sociedades não estariam no estado em que estão.

Por outro lado, estudos empíricos permitem concluir outra coisa: as massas podem não ser capazes de chegar, por geração espontânea, às decisões mais luminosas. Mas são capazes de identificar as más soluções, desde que exista espaço para um debate informado e livre. A democracia ainda é a pior forma de governo, excetuando todas as demais.

Sobre esse último ponto, nunca tive dúvidas. Mas o principal mérito da democracia não está na sabedoria dos democratas, que sempre presumi que fosse pequena.

O mérito da democracia está no fato de permitir a gestão dos descontentamentos sociais sem derramamento de sangue.

A ideia foi popularizada por Karl Popper e eu assino embaixo: pode não ser a forma mais poética de defender a democracia, mas é talvez a mais realista. E, já agora, a mais amparada pela história.

Quando tentamos saber o que tornou a democracia possível em certas latitudes —e não em outras—, existem três teorias clássicas que aparecem imediatamente: a democracia é um produto do enriquecimento das sociedades; a democracia é a consequência lógica do triunfo da burguesia como sujeito histórico central da modernidade; ou, variação marxista, a democracia marca o triunfo do proletariado e das suas reivindicações.

Sem excluir completamente cada uma delas, existe uma quarta e fundamental razão que Daniel Ziblatt analisou primorosamente no "Conservative Parties and the Birth of Democracy": a democracia só foi possível quando elites tradicionais permitiram.

Ou, em linguagem prosaica, quando as elites chegaram à conclusão que tinham mais a ganhar do que a perder com o jogo democrático.

Nessa viragem, os partidos conservadores tiveram um papel instrumental como intermediários entre o mundo de cima e o mundo de baixo.

Quando conseguiram que elites se transformassem em democratas, mesmo relutantes, a institucionalização da democracia teve chance de acontecer. O caso da Inglaterra, nos séculos 19 e 20, é exemplar.

Quando, pelo contrário, as elites se endureceram nos castelos e não tiveram intermediários à altura do desafio, a experiência democrática foi curta, caótica e rapidamente desceu aos abismos da ditadura.

A Alemanha é o caso mais óbvio para o mesmo período: à mínima oportunidade de reverter os avanços democráticos da República de Weimar, a velha aristocracia tapou o nariz e até engoliu Adolf Hitler, na crença, sempre patética, de que o poderia controlar.

Moral da história?

Os resultados da eleição nem sempre são os mais desejáveis. Mas a pergunta que importa é saber qual seria a alternativa.

Excluir metade do povo que não pensa como você? Entregar as rédeas da charrete para os entendidos?

Parabéns. Você conseguiu a receita imbatível para o caminho de uma guerra civil.

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