João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu América Latina

Colocar Pinochet e Thatcher no mesmo degrau de imoralidade é preguiça mental

'O Conde' é sátira de horror sobre a 'falsa consciência' dos ditadores

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"Como era possível que ninguém risse?" Essa é a pergunta de um amigo, dias atrás, lembrando os grandes ditadores do século 20. É uma importante pergunta.

Pensemos nos mais histriônicos, como Mussolini ou Hitler. Lembremos os gestos dramáticos, a histeria das palavras, a pose, até o vestuário.

Como não ver ali dois palhaços de cabaré?

Como explicar a paixão das massas, a adesão cega, o culto pseudorreligioso por gente tão grotesca?

Há respostas, eu sei. Países em desespero, devastados pela violência, pela pobreza ou pelo crime, engolem qualquer coisa. Mas, com a devida distância, ainda está para aparecer um ditador que não me faça rir antes de chorar.

Augusto Pinochet também pertence a essa galeria ilustre. Os óculos de sol. O bigode. A farda e a capa vampiresca. Não admira que Pablo Larraín tenha visto ali "O Conde", ou seja, o conde Drácula.

O filme estreou na Netflix, nos 50 anos do golpe militar chileno, e eu ri alto com a imaginação do homem, que levou o prêmio de roteiro em Veneza juntamente com Guillermo Calderón.

"O Conde" é uma sátira, com momentos de "Grand-Guignol", e talvez não haja outra forma de tratar do assunto. Sempre tive urticária séria com filmes sérios que tratam seriamente de ditadores ou torcionários.

Nunca suportei o "Che" de Steven Soderbergh, "The Last King of Scotland", de Kevin Macdonald (sobre Idi Amin) ou "A Queda", de Oliver Hirschbiegel, sobre as últimas horas de Hitler.

O tom me parece sempre desadequado e, para ficarmos neste último, não é por acaso que a cena em que Hitler desce o pau sobre os seus generais é objeto de mil dublagens nos vídeos do YouTube. Aquilo ali só funciona como sátira.

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pererira Coutinho de 18.set.23 - Angelo Abu

Pelo contrário, aplaudo "O Grande Ditador", de Chaplin, "A Morte de Stálin", de Armando Iannucci, e o "Bananas", de Woody Allen.

Pablo Larraín está em boa companhia ao apresentar um tal de Auguste Pinoche, um vampiro que já era vampiro nos tempos da Revolução Francesa.

Assustado com os regicídios parisienses, ele decide encenar a sua morte para poder viajar pelos séculos em paz (e sempre com a cabeça de Maria Antonieta como lembrança).

Acabará no Chile, adotando o nome de Augusto Pinochet, e disposto a ser o rei absoluto do país. Quando chega à velhice, e já afastado do poder, encena novamente a sua morte para se livrar dos algozes, ainda que, em pleno caixão, não saiba manter os olhos fechados.

Retirado do mundo, vivendo numa fazenda com a mulher e o mordomo, a existência do "conde" é um calvário. Ele despreza aqueles que o desprezam. Como é possível dizerem que ele roubou?

De um soldado, podem dizer tudo: que ele tortura e mata, por exemplo. Só não podem dizer que é ladrão, ainda que seja. São calúnias que dão vontade de morrer (mesmo).

Felizmente para ele, a chegada de uma donzela vai alentar os seus velhos dentes caninos. Talvez o conde só precise de sangue fresco.

O filme de Pablo Larraín é uma sátira de horror sobre a "falsa consciência" dos ditadores e sua tribo. A alienação em que vivem, podendo ser perigosa, é também hilariante.

Isso é visível nos diálogos entre a jovem donzela e os filhos de Pinochet, que confessam as maiores torpezas como se fossem virtudes ou triunfos, sem nunca suspeitarem da dissonância cognitiva.

Um ponto, porém, é falho nessa obra –e atenção ao spoiler: a narração da história pertence a Margaret Thatcher. Ela própria surge no fim, igualmente vampiresca, para revelar que Pinochet é seu filho: o ditador chileno foi concebido lá atrás, na França pré-revolucionária do século 18, quando Thatcher era uma trabalhadora campesina à mercê da luxúria de um vampiro.

Entendo a crítica: em 1998, quando o juiz espanhol Baltasar Garzón decretou a prisão de Pinochet, o ditador estava em Londres, por razões de saúde, e Thatcher o defendeu.

Foi, talvez, a página mais lamentável da carreira política de Thatcher: a ajuda de Pinochet aos britânicos durante a guerra das Falklands não desculpa tudo. As afinidades ideológicas na luta contra o comunismo também não.

Porém, colocar Thatcher e Pinochet no mesmo degrau de imoralidade é um ato de preguiça mental que não está ao nível da inteligência de Pablo Larraín. Você pode não gostar do estilo e das políticas da Dama de Ferro, mas Thatcher era uma democrata, com três eleições limpas no currículo. De Pinochet ninguém pode dizer o mesmo.

Esse simples fato enfraquece o filme de Larraín: não é possível condenar uma ditadura e, ao mesmo tempo, ignorar tão completamente a natureza de uma democracia.

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