João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu Rússia

Direita radical se identifica com Putin porque ensinou o padre-nosso ao vigário

Essa nova direita radical ocupa agora o lugar da idiotia útil

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Podemos pensar o que quisermos de Vladimir Putin, mas uma coisa é inegável: ele conseguiu que a esquerda radical e a direita radical se unissem por uma causa comum.

Não vou falar da esquerda radical, cuja paixão por Putin me parece fácil de explicar: onde existe antiamericanismo, os camaradas não faltam ao chamamento. Mesmo que esse chamamento, em termos de "classe", seja feito pela plutocracia capitalista.

Hoje, trato da direita radical e sua paixão pelo novo czar. A explicação também é fácil: essa direita, lembrando os cachorros de Pavlov, saliva de excitação quando vê em Putin a última esperança do Ocidente cristão contra o feminismo, os direitos das minorias, o casamento gay e outros cavaleiros do Apocalipse.

Assim é a cabeça dessa gente: Putin pode ser um criminoso de guerra, matando e sequestrando na Ucrânia. Mas, na hora decisiva, não há parada gay em Moscou.

Essa é a explicação fácil, repito. Mas, se você quer uma explicação mais sofisticada, e mais desconhecida, há uma obra na praça que merece leitura atenta: "The Moralist International: Russia in the Global Culture Wars", de Kristina Stoeckl e Dmitry Uzlaner.

O título é um achado: parafraseando a Internacional Socialista (ou Comunista), os autores explicam como foi que a Rússia de Putin se transformou na grande referência da Internacional Moralista.

É uma história que começa com a queda da União Soviética e a desolação espiritual, para além de material, que se seguiu. A ideologia, já sabemos, sempre abominou o vazio. E, sem a fé no marxismo-leninismo, outras crenças acabariam por ocupar o lugar da divindade deposta.

Versão desenhada de foto clássica do experimento científico de Pavlov com um cão.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 12 de setembro de 2023 - Folhapress

Uma nostálgica do comunismo, como Nina Andreyeva, no famoso ensaio que publicou em 1988 contra a Perestroika de Gorbachev, já tinha identificado dois candidatos para essa etapa pós-soviética: o liberalismo progressista e o neoliberalismo, por um lado (é verdade, Nina não faz distinção entre liberalismo de esquerda ou de direita); e o tradicionalismo neo-eslavófilo, por outro, com suas fantasias de um regresso triunfal ao passado pré-soviético.

Como explicam os autores do livro, o texto da professora Andreyeva acertou no alvo: na última década do século 20, os liberalismos andaram à solta, sem prudência ou limites; na primeira década do século 21, houve a virada tradicionalista, em parte como resposta ao momento selvático anterior.

Essa virada teve vários protagonistas. Mas um dos principais —ó surpresa! ó ironia!— foi a direita evangélica americana, que exportou para a Rússia pós-soviética a sua agenda fundamentalista e até seus asseclas: no início da década de 1990, mais de 1.500 missionários ensinaram às novas autoridades russas como combater o satanismo liberal do Ocidente. Até Jerry Falwell lá andou.

Esse esforço foi bem aproveitado pela Igreja Ortodoxa Russa, que nunca teve uma especial vocação, ou uma especial oportunidade, para se fazer ouvir sobre assuntos temporais, quer por razões doutrinárias, quer por razões históricas.

Então, liberta do controle soviético e com um patriarca que condenava publicamente o isolacionismo político da sua igreja (Cirilo 1º, obviamente), a Internacional Moralista tinha seu elenco quase completo.

Digo "quase" porque, a partir de 2012, com o terceiro mandato presidencial de Vladimir Putin, essa agenda tradicionalista e antiliberal se transformou na cola do seu regime, justificando tudo. Até a invasão da Ucrânia contra as forças ocidentais que pretendiam transformar o país na nova Sodoma e Gomorra.

Por incrível que pareça, a direita radical do Ocidente tem razão em identificar-se com o regime de Putin: no fim das contas, foi ela quem ensinou o padre-nosso ao vigário.

Fatalmente, o vigário é apenas um vigarista que usa cinicamente a conversa dos valores, da nação ou da família para prosseguir um projeto imperialista de poder que é a negação pura desses elevados princípios.

Cem anos atrás, Lênin teria batizado como "idiotas úteis" os intelectuais e simpatizantes ocidentais que apoiavam ou difundiam os ideais comunistas sem compreender ou reconhecer a realidade do comunismo soviético.

A nova direita radical, que sempre usou e abusou desse insulto, ocupa agora o lugar da idiotia útil. Estão todos de parabéns.

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