João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Matar uma adolescente por não usar o hijab não é defender uma doutrina

Jovem teria sido espancada por não respeitar o vestuário dos aiatolás, que impõe às mulheres um trapo qualquer

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1. Leio nesta Folha que Armita Geravand, a adolescente iraniana detida pela polícia do Irã, se encontra em "morte cerebral". A jovem de 16 anos terá sido espancada pelos verdugos do regime. Por qual delito?

O de sempre: não respeitar o código de vestuário dos aiatolás, que impõe às mulheres um trapo qualquer na cabeça.

Bárbaro? Não é preciso dizer o óbvio. Fiquemos pelo menos óbvio: o Irã é como éramos nós, ocidentais, 500 anos atrás.

Teerã é a Genebra de Calvino, digamos, onde o "consistório" se entretinha a vigiar severamente os genebrinos. Não apenas em matérias doutrinárias, o que já seria aberrante. Também em matérias banais, como vigiar o vestuário das donzelas.

Até os 15, ninguém usava seda. Depois dessa idade, era proibido o veludo. Os homens também estavam sob vigilância —do cabelo (nunca um risco ao meio) aos pés (nunca sapatos com presilhas douradas).

Imagem baseada em uma gravura medieval onde uma pessoa amarrada é queimada viva em uma fogueira acesa por uma pessoa com uma caveira no lugar do rosto.  Acima, no meio da fumaça, uma mulher é atacada por um dragão vermelho, e mais ao fundo, um casal adentra uma fornalha acesa. Trata-se de uma alegoria representando o terror do período da Inquisição
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 24 de outubro de 2023 - Angelo Abu

De resto, estavam proibidos os teatros, os divertimentos, a dança, as festas populares. Até os nomes mais comuns, como Claude ou Amadé, foram riscados das pias batismais, por não constarem da Bíblia.

A Genebra do século 16, tal como o Irã de hoje, era o túmulo da criatividade, da bondade e da compaixão porque Calvino, como um verdadeiro aiatolá, queria instilar no coração dos homens o terror a Deus.

O escritor Stefan Zweig, que escreveu um dos seus melhores livros sobre essa distopia —"Castélio Contra Calvino, Ou uma Consciência Contra a Violência"–, vai desfilando nessa obra os contornos tenebrosos de uma cidade, e de um tirano, que acabaria por atraiçoar o próprio espírito da Reforma.

Prova disso é a condenação à morte do teólogo espanhol Miguel Servet por "heresia" —uma acusação irônica quando o protestantismo, aos olhos de Roma, era a suprema heresia.

Essa contradição insanável foi denunciada à época por Sebastião Castélio, o sábio de Basileia, que deixou a frase: "Queimar uma pessoa não quer dizer defender uma doutrina, mas sim matar uma pessoa".

Como normalmente acontece aos espíritos limpos que habitam eras sujas, Castélio acabaria só, como "um mosquito contra o elefante", na defesa da tolerância contra o fanatismo. Calvino esmagou seu rival.

Mas a mensagem sobreviveu ao mensageiro e, nos séculos seguintes, não deixa de ser novamente irônico que tenham sido os países de herança protestante a acolher os perseguidos da religião e da política –e a permitir o florescimento da democracia. Sebastião Castélio era, enfim, redescoberto.

No fim das contas, a vontade de liberdade é mais forte do que o terror dos tiranos —e, como escreve Zweig, "sempre se erguerá um Castélio contra um qualquer Calvino, para defender a autonomia soberana do pensamento contra todas as violências da violência".

É apenas o que desejo, e o que espero, dos jovens iranianos de hoje. Parafraseando: matar uma adolescente por não usar o hijab não quer dizer defender uma doutrina, mas sim matar uma adolescente.

É essa evidência que, mais cedo ou mais tarde, vai destruir o regime teocrático por dentro.

2. Um amigo de longa data, judeu inglês, a viver em Londres há mais de dez anos, confessame ao telefone que não se sente seguro por lá. Talvez escolha Portugal para morar. Razão?

As manifestações em defesa dos palestinos (causa justa, justíssima, diz ele e digo eu), que rapidamente degeneram em antissemitismo virulento, com cânticos de exortação genocida: "‘from river to the sea, Palestine will be free" (do rio Jordão ao mar Mediterrâneo, a Palestina será livre). A libertação, aqui, significa apagar o estado de Israel do mapa. Literalmente.

A polícia, de braços cruzados, nada faz. Mas, no meio deste circo de morte, há momentos de involuntário humor negro: uma bandeira arco-íris ondula lá pelo meio, como se a luta do Hamas contra Israel fosse compatível com a luta LGBTQIA+ contra a homofobia.

"Não saberão eles que a homossexualidade é considerada um crime em Gaza e que os homossexuais são presos, ou até mortos pelo Hamas?"

Entendo o pasmo. A situação é tão absurda como recuar a 1935 e ver, no comício nazista que Leni Riefenstahl filmou em "O Triunfo da Vontade", em Nuremberg (Alemanha), bandeiras do povo cigano apoiando o antissemitismo de Hitler.

Mas é preciso compreender que a política, hoje, está reduzida ao binômio mais primitivo: se marchar contra Israel é uma causa "progressista", então todas as causas progressistas devem estar juntas no mesmo barco.

Pelo menos, até metade da tripulação ser degolada pela outra metade.

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