João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Diário da Europa: Veneza é mais importante que seu rosto sorrindo para a foto

Lutar pela democracia implica um movimento exógeno, e a incapacidade de o fazermos é um brinde para déspotas

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Assisto ao vídeo: turistas nadando num canal de Veneza. O gondoleiro avisou: nada de selfies em pé. Tudo sentado, por favor.

Os turistas não acataram a ordem. A gôndola virou.

Há algo de poético no castigo: as águas dos canais só são belas nas fotos. Na realidade, são esquálidas e fedorentas. E geladas.

Mas há algo triste, também, nessa febre narcísica de nos colocarmos sempre no enquadramento. Como se o mundo fosse um pretexto, um cenário, uma decoração para nossos sorrisos idiotas. Veneza? Que é isso sem mim?

Faz lembrar uma velha piada que me contaram no Brasil sobre os argentinos. "Little Couto, você sabe por que um argentino gosta de subir na Torre Eiffel?" Resposta: é para ver como fica Paris sem ele.

Todos somos argentinos. Todos somos histéricos, como afirma Luc Ferry, no seu último livro, "La frénésie du bonheur", o frenesi da felicidade. Ainda não li a obra, mas a entrevista do filósofo ao Le Figaro abriu o apetite.

Gôndolas em Veneza, na Itália - Gabriel Bouys/AFP

A civilização, a nossa, só foi possível pelo altruísmo e pelo sacrifício, lembra ele. Ou, simplificando, pelo amor que fomos capazes de nutrir por aquilo que existe fora de nós —a família, os amigos, os compatriotas. A democracia, a liberdade, Deus, a razão. Qualquer coisa, exceto nosso umbigo.

Hoje, somos definidos por um amor a nós próprios simplesmente ridículo e estéril. Luc Ferry fala mesmo de um conceito —a "autoparentalidade"– que tem feito sucesso na França.

O nome diz tudo: devemos ser filhos de nós próprios, amarmo-nos como amamos a descendência, incondicionalmente e de forma benevolente.

Sou grotesco e ignorante? Tudo bem. Aos meus olhos, sou glorioso e perfeito.

Que pena a "autoparentalidade" não ter existido no tempo das cavernas! Dificilmente teríamos saído de lá. Continuaríamos, muito contentes com nossos grunhidos, a pintar auto-retratos nas paredes de Lascaux. Selfies rupestres!

Mas o amor de nós próprios tem implicações políticas sérias. Lutar pela democracia, pela decência, pela dignidade implica um movimento exógeno. Implica sairmos de nós próprios para lidarmos com o mundo hostil que existe lá fora.

A incapacidade de o fazermos é um brinde para déspotas de todo tipo, que contam sempre com a nossa autoindulgência para devorarem o que resta da liberdade.

"No combate entre você e o mundo, apoie o mundo", escreveu Kafka num dos seus aforismos. Tradução possível: o mundo é mais importante que as fantasias do seu ego.

E Veneza, por incrível que pareça, é mais importante que seu rosto vulgar sorrindo para a foto.

Li recentemente que estudantes de algumas universidades americanas têm três números de telefone à disposição. O primeiro, para uma emergência médica. O segundo, caso aconteça um atentado terrorista. E o terceiro, para denunciarem uma "micro-agressão".

Notável. Em 2023, as "microagressões" têm o mesmo estatuto da doença grave e do atentado terrorista. Mas não qualquer "microagressão". Se, por exemplo, você for judeu e os seus coleguinhas defenderem o genocídio de judeus, tudo depende do "contexto".

Essa, pelo menos, é a interpretação das presidentes das universidades da Pensilvânia e de Harvard, ouvidas pelo Congresso.

Conta Douglas Murray, no Daily Telegraph, que as delicadas senhoras não concordam com o genocídio propriamente dito, o que me parece de uma generosidade sem limites. Mas exortações a esse genocídio podem ser formas legítimas de liberdade de expressão.

Escutamos essas coisas e depois imaginamos um telefonema entre o estudante judeu e o especialista em microagressões:

"Alô? Preciso de ajuda."

"Pode dizer."

"Fui agredido."

"Certo. Você é negro?"

"Não."

"Nativo-americano?"

"Não."

"Trans?"

"Não."

"Muçulmano?"

"Não."

"Então foi agredido como?"

"Sou judeu."

"Judeus nunca são agredidos."

"Estão dizendo que é preciso matar judeus."

"Você pensa que foi agredido. Mas é preciso ver o 'contexto'."

"Qual 'contexto'?"

"O 'contexto'. Não ensinam isso nas aulas?"

"Mas..."

"E ainda dizem que os judeus são espertos."

A chamada cai.

Que surpresa boa, esse Jon Fosse, Nobel da Literatura em 2023. Desconhecia. Mas então chegou-me nas mãos o seu "A Shining", pequena narrativa sobre um homem que dirige o carro sem destino certo —um hábito meu, confesso, que tem aumentado com a idade; mas divago.

O carro termina a viagem preso na neve. O homem sai do carro, deambula pelo bosque, procurando ajuda e temendo o seu fim.

Não conto o que acontece a seguir, até porque a prosa de Fosse tem a ambiguidade certa para nos jogar em território desconhecido. Será sonho? Loucura? Momento místico?

Uma coisa é certa: é literatura, no sentido mais nobre e autónomo da palavra, capaz de retomar os temas eternos da nossa experiência humana.

Como escrevia o poeta,

No meio do caminho em nossa vida
eu me encontrei por uma selva escura.

Quem nunca se perdeu nessa selva, que atire a primeira pedra.

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