João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu União Europeia

Como esperar comportamentos civilizados em sociedades descivilizadas?

Essa pergunta é válida para todos, políticos, intelectuais, policiais, manifestantes, periféricos, ninguém escapa

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Paris é uma festa, já dizia o velho Hemingway, sobretudo quando há violência nas ruas, uma conhecida atração turística desde, pelo menos, 1789.

As notícias são conhecidas: durante uma abordagem de trânsito em Nanterre, um jovem de origem argelina foi morto pela polícia. Seu nome era Nahel, tinha 17 anos e o agente que disparou está agora acusado de homicídio voluntário.

Espectador da Tour de France exibe faixa com os escritos 'justiça para Nahel' - Marco Bertorello/AFP

Nos dias seguintes, e apesar da justiça ter sido célere na detenção e acusação do policial, os motins se multiplicaram pelo país e alguns episódios são dignos de assombro, como o ataque à residência do prefeito de L’Hay-les-Roses e a destruição parcial da biblioteca de Marselha.

Não vou repetir argumentos gastos sobre a matéria. Lendo e escutando os "especialistas", há explicações para todos os gostos, consoante a inclinação ideológica de cada um.

Se você é de esquerda, pode esgrimir o "racismo sistêmico" (da polícia) e a pobreza econômica (dos "bairros quentes") como explicações capitais.

Se você é de direita, não se esqueça de referir a nefasta influência do islamismo político e, muito importante, a imigração descontrolada.

Se você é de esquerda e de direita, consoante o dia da semana, pode sempre lembrar o problema da "integração": os jovens da periferia não são integrados na sociedade (esquerda) ou, ligeira variação, não se querem integrar (direita).

Longe de mim decidir quem tem razão. Provavelmente, têm todos. Provavelmente, ninguém tem.

Minha pergunta, que não vi respondida em lado nenhum, é outra: como explicar que os pais e avós desses jovens tenham vivido e trabalhado pacificamente na França, mas seus filhos e netos não?

Que se passou nos últimos anos para que o contrato social tenha, basicamente, implodido?

Curiosamente, o inábil Emmanuel Macron, antes desses motins, flertou com uma explicação. Estamos a viver um "processo de descivilização", disse ele.

Foi crucificado pela ousadia: "descivilização" é um termo da extrema direita, acusaram os bem-pensantes, que trataram logo de lembrar Renaud Camus, um teórico da seita.

Fato: Renaud Camus, um pensador de quinta categoria, usou a palavra no título de um livro de 2011. Mas Macron não estaria a pensar nele. A paternidade do conceito, como lembrou Gaël Brustier no Le Figaro, é do grande sociólogo alemão Norbert Elias (1897 – 1990).

Assino embaixo. Norbert Elias tornou-se célebre com os seus estudos sobre o "processo civilizador": nos alvores da Idade Moderna, e com a crescente complexidade das sociedades políticas, houve um refinamento comportamental que levou os indivíduos a controlar melhor os seus impulsos e instintos.

Esse processo, na linguagem do sociólogo, gerou um "habitus", tanto a nível individual como coletivo. A sociedade passou a premiar certos comportamentos distintos e os indivíduos, para corresponderem às expectativas do grupo, passaram a internalizar esses comportamentos.

Quando lemos os manuais de boas maneiras a partir do século 15 vamos confirmando essa evolução: o refinamento torna-se regra e, pormenor importante, vai-se democratizando de cima para baixo, ou seja, da nobreza de corte à burguesia.

Mas Norbert Elias não estudou apenas o "processo civilizador". Era igualmente importante entender o seu oposto, ou seja, o processo descivilizador que levava os indivíduos de volta para a barbárie.

O caso do nazismo, sem surpresas, ocupou o autor depois da Segunda Guerra Mundial (Elias perdeu os pais no Holocausto). Como explicar o horror?

Para Elias, a "descivilização" tinha começado no século 19, com o crescente militarismo da Alemanha pós-unificação. As virtudes guerreiras contaminaram o país com o seu culto da obediência, da agressividade e do desprezo pela vida humana.

Eis a principal lição de Elias: o que fazemos em sociedade depende do "habitus" dessa sociedade. Ou, em linguagem corrente, como esperar comportamentos civilizados em sociedades descivilizadas?

Essa pergunta é válida para todos: políticos, intelectuais, policiais, manifestantes, periféricos. Ninguém escapa.

E, se ninguém escapa, as explicações simplórias das esquerdas e das direitas soam vazias.

Em teoria, seria possível desarmar os policiais ou distribuir cheques ainda mais generosos pelos "bairros quentes", como alguma esquerda deseja.

Em teoria, seria possível ilegalizar o Islã e fechar as fronteiras aos imigrantes, como alguma direita deseja.

Mas o problema ficaria intocado: a regressão das normas morais de civilidade e decência, anteriormente salvaguardadas pelas famílias, pelas escolas, pela vizinhança, pela religião —e pela censura social, quando ainda não era proibido proibir.

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