João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Nanni Moretti reescreve o passado para aliviar a sua melancolia de esquerda

Ironicamente, o diretor replica a técnica stalinista de reescrever o passado de acordo com as conveniências do presente

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Você conhece aquela história do alfaiate da cidade alemã de Ulm que sonhava voar? Estamos em 1592. O alfaiate constrói uma máquina com asas. O bispo, confrontado com semelhante soberba, condena os sonhos do alfaiate.

Ilustração de Angelo Abu

Mas ele não desiste: para provar que o voo humano é possível, resolve saltar da janela da catedral com a sua máquina.

Para usar um eufemismo, não corre bem. O bispo tinha razão. Mas, no longo prazo, séculos depois, os homens podem voar. O alfaiate, no fim das contas, foi um visionário.

A história é contada por um poema de Bertolt Brecht que o ensaísta italiano Enzo Traverso recorda no seu notabilíssimo "Melancolia de Esquerda" (Âyiné, 495 págs.). A história do alfaiate pode ser entendida como uma metáfora do comunismo. No curto prazo, falhou. No longo, quem sabe?

Entendo a lógica da pergunta. Nunca me convenceu. Existe uma diferença fundamental entre nos arriscarmos por um sonho (voar) e arriscar milhões de seres humanos (obrigados a voar com a gente).

A história do alfaiate de Ulm só faria sentido como metáfora do comunismo se, no momento em que ele salta, arrastasse para a morte toda a cidade de Ulm na sua máquina, bispo incluso —um gesto suicida e homicida que, entendo, não ficaria bem num poema de Brecht.

Seja como for, Enzo Traverso não tem ilusões: o século 21, ao contrário dos dois anteriores, começou sem uma utopia mobilizadora. Nos inícios do século 19, havia o legado da Revolução Francesa. Nos inícios do século 20, as promessas da Revolução Russa.

Mas a queda do Muro de Berlim marca um naufrágio profundo —ou, voltando ao título do ensaio, uma melancolia profunda. Claro, a esquerda revolucionária teve naufrágios anteriores. A esse respeito, Enzo Traverso recorda 1848, a Comuna de Paris em 1871 ou a "revolta espartaquista" de 1919, que terminou com o assassinato de Rosa Luxemburgo às mãos das "Freikorps".

Porém, todas essas derrotas transportavam um gérmen de esperança. Em rigor, não foram derrotas; apenas etapas no caminho da vitória final.

Depois de 1989, parece não haver esperança ou futuro. E, quando não há futuro, só há passado. Esse é o motivo pelo qual a "vítima" se converteu na figura capital do nosso tempo.

Foi assim que, segundo o autor, o Gulag substituiu a revolução; o Holocausto substituiu a luta antifascista; e a escravidão substituiu o anticolonialismo. A "ética da esperança" deu lugar a uma esmagadora "ética da responsabilidade".

Pessoalmente, não vejo um retrocesso. Pelo contrário: em política, a responsabilidade deve vir primeiro que a esperança.

Mas os melancólicos de esquerda não se conformam com a perda —e Nanni Moretti é o maior melancólico que existe. O seu mais recente filme, "O Sol do Futuro", ilustra o que digo.

Na história, encontramos um diretor de cinema (Moretti "lui même", como Giovanni) que pretende contar o impacto da invasão soviética da Hungria, em 1956, no Partido Comunista Italiano. Como conciliar os mais elevados padrões humanistas com aquela exibição de brutalidade pura?

Para a camarada Paola (Barbora Bobulova), não há conciliação possível: a invasão deve ser denunciada nos termos mais severos.

Para o camarada Ennio (o sempre impagável Silvio Orlando), não é possível ter razão fora do partido: se o líder Palmiro Togliatti apoia Moscou, quem são eles para se oporem?

Apesar da sua ortodoxia, a fé de Ennio vacila. E o filme —atenção ao spoiler!— deveria ter terminado com seu suicídio.

Porém, o diretor não aceita esse final. Prefere outro: Ennio marcha com Paola contra o PCI e a decência triunfa. Em 1956, lemos nos créditos finais, o PCI condenou a invasão soviética da Hungria.

Acontece que, na realidade, não condenou: em 1956, a liderança do PCI esteve ao lado de Nikita Khrushchev, apesar dos críticos internos.

A história alternativa de Nanni Moretti pode aliviar a sua melancolia de esquerda. Mas, quando assistia à resolução do filme, não pude deixar de pensar que Moretti, ironicamente, apenas replica a velha técnica stalinista de reescrever o passado de acordo com as conveniências do presente.

Haverá forma mais desonesta de lidar com a melancolia de esquerda?

Como escreve Enzo Traverso, propondo um novo ânimo para a esquerda do século 21, "o luto é inseparável da esperança".

Mas não há luto em Nanni Moretti, razão pela qual a esperança soa tão falsa e infantil.

Em 1592, morreu em Ulm um alfaiate que sonhava voar. A cidade inteira morreu com ele. Quem afirma que o voo foi um sucesso apenas profana as suas memórias.

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