João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Stálin é o único leitor que tinha na estante autores que mandara matar

Em relação aos santos do seu relicário, nunca há uma palavra de discórdia

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Sempre tive uma curiosidade mórbida pela biblioteca dos ditadores. Mórbida porque sei que vou encontrar lixo, não obras refinadas de autores refinados. Mas insisto no meu masoquismo literato.

Anos atrás, escrevi nesta Folha sobre a biblioteca de Hitler. O velho Adolfo teria uns 16 mil volumes. Sobreviveram 1.200, hoje nos Estados Unidos. Mas uma análise do espólio e das anotações que ele foi espalhando pelas páginas permitia reconstruir a cabeça do personagem. Conclusões?

Hitler era um mau leitor. Não apenas pelo lixo que consumia (obras de ocultismo, espiritismo, prosa racista de Madison Grant, o nacionalismo rasteiro de Otto Dickel), mas porque gostava de canibalizar o trabalho dos outros para reforçar os seus preconceitos e delírios de base.

Um bom leitor é um ser omnívoro, que gosta de nadar onde não dá pé, movido por uma curiosidade vadia. A curiosidade de Hitler era nula porque os fanáticos são desprovidos de curiosidade ou imaginação.

Podemos dizer quase a mesma coisa sobre Stálin. Nos 70 anos da morte do tirano, resolvi espreitar a sua biblioteca através do livro recente de Geoffrey Roberts ("A Biblioteca de Estaline", edição portuguesa pela Zigurate). Aconselho vivamente.

Stálin vence Hitler em quantidade: teria 25 mil livros, periódicos e panfletos. Mas depois, quando vemos a lista, confirmamos que o mundo de Stálin era tão estreito como a sua cabeça.

Tirando algumas concessões ao romance e à historiografia ocidental, a biblioteca é esmagadoramente soviética, ou seja, pós-1917. Poesia, nem vê-la (idem para Hitler). Em termos de idiomas, temos o russo e o georgiano, nada mais.

Uma  longa estante cheia de livros diante de uma mesa e cadeira vazia, tudo na cor vermelha, em alusão ao Stalinismo.
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 6.mar.23 - Angelo Abu

E, na galeria de autores, lá encontramos a fauna do costume: bolcheviques, marxistas diversos, socialistas. Por ordem decrescente, Lênin leva a copa; depois vem o próprio Stálin, Zinoviev, Bukharin, Marx, Kamenev, Molotov, Trotsky, Kautsky, Engels, Rykov, Plekhanov, Rosa Luxemburgo. Originalidade?

Apenas uma: Stálin é talvez o único leitor que tinha na estante autores que mandara assassinar. Imagino que isso seja o sonho úmido de muitos críticos literários.

Mas é quando abrimos os livros e nos confrontamos com os sublinhados e as anotações de Stálin que as afinidades com Hitler se tornam manifestas. Em relação aos santos do seu relicário, nunca há uma palavra de discórdia, de dúvida, de hesitação. Os textos de Marx ou Lênin aparecem imaculados.

Como conta Geoffrey Roberts, a fidelidade de Stálin ao cânone era tão intensa que, muitas vezes, nas discussões políticas, o ditador tinha por hábito tirar da estante um volume de Lênin e proclamar: "Vejamos o que tem Vladimir Ilyich a dizer sobre essa questão". Um televangelista não diria melhor.

Já sobre os inimigos, reais ou imaginários, a marginália era generosa em sarcasmos e grosserias. Um exemplo revelador da "forma mentis" de Stálin acontece na leitura de Karl Kautsky, esse "renegado" que cometeu a heresia suprema de criticar a seita. Para Stálin, Kautsky era um "tolo" por sugerir que o conhecimento humano é sempre limitado e provisório.

Não era. O catecismo marxista-leninista era a última palavra –e só em questões de pormenor, mais por conveniência do que por discórdia substancial, Stálin se desviava do carril.

No fundo, e tal como Hitler, os livros serviam para reforçar dogmas previamente adotados, o que nos leva para um território que não é mais político nem filosófico, muito menos "científico", mas religioso.

São vários os autores que sempre olharam para o nazismo e para o comunismo como "religiões seculares": escatologias que mimetizam a velha religião cristã, substituindo apenas o reino de Deus pelo reino da raça ou do proletariado. A biblioteca e os hábitos de leitura de Hitler e Stálin confirmam.

Escusado será dizer que ambos deixaram seguidores. Não falo dos seguidores mais óbvios –neocomunistas ou neonazistas.

Falo de uma parte da esquerda e da direita contemporâneas, fechadas nas suas bolhas cognitivas, com as suas crenças constantemente reforçadas pelo "echo chamber" (câmera de eco) das redes sociais.

É assim que os vejo: pequenos Hitlers e pequenos Stálins, sem mundo, sem abertura ao mundo, sem curiosidade pelo mundo, cada um com a sua fé. Ou, como na piada, cada um com as suas fezes.

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