João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Podemos não estar interessados no apocalipse, mas ele está interessado em nós

Sem essa verdade inconveniente, qualquer análise sobre o assunto estará incompleta

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Só o humor nos salva. A TV está ligada, o ataque do Irã a Israel vai rolando na tela. E eu rio com uma entrevista de John Jenkins, antigo diplomata britânico no Oriente Médio, à revista "New Statesman".

Diz ele, com inteira razão, que o mundo ocidental perdeu a capacidade de entender o universo simbólico e religioso da elite teocrática iraniana. E, como exemplo, contou uma conversa que teve, anos atrás, com um conselheiro iraquiano em Bagdá.

Alguém contara a Jenkins que o então presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad deixava sempre uma cadeira vazia nas suas reuniões de governo. Para quem? Para o 12º imã do xiismo, que desapareceu no século 9º.

O conselheiro iraquiano, confrontado com o bom humor de Jenkins, perguntou-lhe se ele não acreditava no regresso do "imã oculto". Jenkins respondeu que, como católico, também aceitava o fim dos tempos. Mas duvidava que o "imã oculto" (o Mahdi) fizesse a sua aparição numa reunião de governo.

Que tem essa história a ver com o ataque em curso?

Tudo, embora eu entenda a perplexidade da pergunta. Nos textos correntes sobre o conflito israelense-palestino, cometem-se dois erros que só atrapalham.

O primeiro é acreditar que ainda existe um conflito israelense-palestino. Não existe. O conflito é israelense-iraniano há, pelo menos, duas décadas.

O segundo equívoco decorre do primeiro: o regime teocrático, usando "proxies" (Hamas, Hezbollah etc.) ou inaugurando hostilidades diretas, combate Israel para destruí-lo, não para garantir a solução dos "dois Estados". Mas por que motivo Teerã quer destruir Israel?

Sim, haverá razões geoestratégicas (e bem pragmáticas) que lidam com a ambição do Irã em ser a grande potência regional no Oriente Médio.

Cadeira estofada estilo século XIX vazia no meio da cena. Textura de sangue escorrendo decora o estofado.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 15 de abril de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

Mas parte da resposta está também na cadeira vazia que Ahmadinejad gostava de ter nas suas reuniões. Na reinterpretação que os aiatolás Ruhollah Khomeini e Ali Khamenei fizeram da tradição messiânica do xiismo desde 1979, é preciso preparar o regresso do Mahdi.

E, para isso, é imperioso remover os "obstáculos" que existem no seu caminho. Israel é o maior deles.

Essa história, que não casa bem com nosso secularismo iluminado, está bem contada no ensaio que Saeid Golkar e Kasra Aarabi publicaram no Middle East Institute em 2022: "Iran’s Revolutionary Guard and the Rising Cult of Mahdism: Missiles and Militias for the Apocalypse". Aconselho vivamente.

Explicam os autores que, tradicionalmente, o retorno do "imã oculto", juntamente com seus 313 soldados para vencer o mal numa batalha apocalítica, implicava uma preparação religiosa e espiritual para os seus seguidores.

Com a revolução iraniana de 1979, o aiatolá Khomeini introduz uma cisão nesse "quietismo xiita". A preparação é também política, desde logo pela instauração de um governo islâmico e de uma guarda revolucionária capaz de velar pelos valores da revolução.

Mas é sobretudo com Ali Khamenei, sucessor de Khomeini como "líder supremo", que o "mahdismo" se converte na lente principal do regime para entender o país e o mundo.

Contam Golkar e Aarabi que, em 1997, com a vitória do "reformista" Mohammad Khatami nas eleições presidenciais, Khamenei fica alarmado com o fato de 73% dos membros da Guarda Revolucionária Iraniana terem votado no "reformismo".

O que veio a seguir foi terapia de choque na formação das novas gerações de guardas revolucionários. A defesa da teocracia e a necessidade de exportar a revolução islâmica no Oriente Médio continuaram sendo os pilares essenciais do regime.

Mas a dimensão escatológica do mahdismo passou a orientar as opções geoestratégicas do Irã na luta contra "o sionismo, o sionismo wahabista e o sionismo cristão".

Ou, traduzindo em linguagem menos cifrada, contra Israel, os sunitas e os Estados Unidos. Não haverá redenção da humanidade com esses demônios no caminho.

Na entrevista, John Jenkins termina com uma paráfrase trotskista: o fato de não estarmos interessados no Oriente Médio não significa que o Oriente Médio não está interessado em nós.

É uma boa frase, embora eu prefira outra: o fato de não estarmos interessados no apocalipse não significa que o apocalipse não está interessado em nós.

Enquanto o mundo não digerir essa verdade inconveniente, qualquer análise sobre a guerra naquelas bandas estará incompleta.

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