João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Não há inocentes

Como em filmes do faroeste, era só esperar para ver quem sacaria a arma primeiro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quando soube do atentado contra Donald Trump, acho que bocejei. Não é desrespeito. É sensação de déjà vu. Como fingir que estou espantado quando não estou?

Há aqui razões históricas e razões circunstanciais que explicam o meu "spleen".

Historicamente, é justo reconhecer que aquele pessoal sempre gostou de matar, ou de tentar matar, presidentes.

Vários alvos sobrepostos se espalham na composição, em tamanhos diferentes, como se fossem gotejamentos de chuva na superfície de águas calmas
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 16 de julho de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

Quatro foram eliminados com sucesso —Lincoln, Garfield, McKinley, Kennedy. Vários sobreviveram por milagre, como Theodore Roosevelt, em 1912, ou Ronald Reagan, em 1981.

Aliás, em que outro país do mundo haveria um musical —sim, você leu bem: um musical da Broadway em que os personagens principais são os assassinos dos presidentes?

O musical é brilhante porque escrito por uma mente brilhante: Stephen Sondheim, um dos meus heróis. O título é, simplesmente, "Assassins" e junta nove criminosos em canções primorosas.

Uma delas, intitulada "Unworthy of Love", é um dueto belíssimo entre John Hinckley Jr. —que tentou matar Reagan— e Lynette Fromme —que tentou matar Gerald Ford. Ambos dedicam as suas árias aos ídolos que amam obsessivamente e que, nas suas particulares cabeças, serviram de inspiração para o crime: Jodie Foster, no caso de Hinckley, e Charles Manson, no caso de Fromme. Apesar de tudo, Hinckley tinha bom gosto.

Mas é a canção final, "Another National Anthem", que resume o espírito da obra: os assassinos reúnem-se, ufanos, para reclamarem o seu prêmio pelos serviços prestados à nação. Mas não há prêmio; só infâmia. O crime não resgatou as suas vidas miseráveis.

Aprendi mais escutando o musical de Sondheim do que lendo bibliografia histórica sobre a matéria. O compositor captou na perfeição o que faz mover essa fauna.

Razões políticas? Raramente.

Loucura? Quase sempre.

Mas, sobretudo, há uma busca de atenção e de celebridade que seja capaz de redimir o anonimato opressivo. O artista do momento, Thomas Matthew Crooks, não deve ser muito diferente dos anteriores.

Se existe alguma novidade no atentado é ele não ter acontecido mais cedo —contra Trump ou até contra Biden.

E essa é a razão circunstancial que também explica o meu bocejo: ninguém é inocente aqui. Leio algures que a Universidade de Chicago, tempos atrás, partilhou um estudo sobre a tolerância dos americanos em relação à violência contra adversários políticos.

Os números dão quase empate: 26 milhões (10% da população) eram favoráveis ao uso de violência contra Trump; 18 milhões (7%) aplaudiam o uso de violência a favor de Trump.

Como nos filmes do faroeste, era só esperar para ver quem sacaria a arma primeiro, embora a esquerda ande a fantasiar com o assunto há muitos anos.

Desde que Trump apareceu no radar, perdi a conta ao número de filmes, peças de teatro, obras de arte que encenaram a carnificina com requintes de malvadez.

O classicista Victor Davis Hanson, depois do atentado, chegou mesmo a fazer uma lista das celebridades que partilharam com o mundo a forma mais eficaz de despachar o Donald para os confins do Hades.

Cito Hanson: Robert de Niro desejava espancá-lo; Kathy Griffin e Marilyn Manson, decapitá-lo; Snoop Dogg, alvejá-lo; Anthony Bourdain, envenená-lo; Pearl Jam, devorá-lo; Madonna, explodi-lo; Rosie O’Donnell, lançá-lo de um penhasco; etc.

Como conclui Hanson, com inteira razão, matar Trump faz todo sentido quando ele é apresentado como um novo Hitler. No fundo, é como aquela pergunta infantil, própria dos infantis: "Se você pudesse viajar no tempo e encontrar o velho Adolfo com seis anos, você o mataria?"

Fato: Trump é um homem perigoso. Novo fato: a recente decisão da Suprema Corte de conceder imunidade ao presidente nos seus "atos oficiais" é ainda mais perigosa.

Mas reduzir qualquer adversário à figura de um Hitler —o "reductio ad hitlerum"— como diria Leo Strauss) aumenta a chance de alguém levar isso a sério. E, como diz o povo, antes prevenir que remediar.

E agora?

Certo: o atentado favorece Trump. Mas é preciso não esquecer que o provável retorno do homem à Casa Branca se explica pela profunda corrupção moral de republicanos e democratas.

Os primeiros renderam-se a uma criatura que envergonha a história do partido; os segundos, depois de montarem um espetáculo de encobrimento sobre a saúde mental de Joe Biden, esperam agora por um milagre.

Boa sorte, gente. Eu prefiro escutar o meu Sondheim. "São necessários muitos homens para fabricar uma arma", escreveu ele para o tema "Gun Song".Verdade, Stephen. E só é preciso um para apertar o gatilho.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.