José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Meninos do Brasil 2022

Abertas as entranhas do país, mídia atenua omissão golpista de presidente

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O golpe de Jair Bolsonaro não veio até agora, mas não foi por falta de golpistas. Nas ruas, em frente a instalações militares, nas estradas e nas redes sociais, gente subversiva transita entre o ridículo e o temerário. O sujeito ensaia ordem unida de bermuda, camisa da seleção e mastro com bandeira no ombro fazendo às vezes de fuzil, marchando de um lado para o outro de forma patética. Em volta, ninguém presta atenção. O bizarro se naturaliza.

A Gaviões limpa a marginal Tietê em minutos, enquanto a PM do governo Rodrigo Garcia estuda o manual e leva dias para desatar o nó na Castelo Branco. A mulher defende a legitimidade da manifestação "passiva". A piada perde a graça quando imagens mostram graus variados de violência. Existe mesmo esse Brasil?

Segundo cálculos do Datafolha, 21% dos eleitores do país são bolsonaristas resolutos. É o grupo que diz ter votado em Bolsonaro em 2018, considera seu governo ótimo ou bom e sempre confia no que ele diz. Também com dados relativos à penúltima pesquisa antes do pleito final, cruzando os votos de 2018 e primeiro turno, intenção para o segundo e a chancela de ótimo ou bom, a fatia cresce para 27%. Estudiosos dizem que os radicais estão entre 5% e 15%. Em qualquer conta, não é pouca gente.

Não eram poucos também os flagrados em Santa Catarina cantando o hino com seus braços direitos levantados à frente. Investigação preliminar do Ministério Público local constatou que não era uma saudação nazista, mas um pedido do locutor do evento para que todos estendessem o braço até o ombro do vizinho a fim de "emanar energias positivas". A Promotoria pode achar o que quiser, quem viu o vídeo ficou chocado com uma grande manifestação de estética nazista.

Enquanto tudo isso acontecia, Bolsonaro se reservava o direito de permanecer calado. Quando enfim falou, na tarde de terça-feira (1º), disse pouco, o suficiente para não dar margem a um processo judicial e o necessário para manter sua horda em compasso de espera. Ainda assim, os principais veículos do país conferiram estatura ao presidente em suas manchetes. Na Folha, ele "condena os bloqueios"; em O Globo, "ignora a derrota"; em O Estado de S.Paulo, "não contesta a derrota"; no Valor, "diz que respeita a Constituição", parecido com o "vai cumprir a Constituição" do G1; no UOL, "defende o direito de ir e vir". Bolsonaro usou essas palavras, mas claramente não quis dizer nada disso. O "condena bloqueios" da Folha é notável. Ele praticamente legitimou as manifestações, como mostraram as redes sociais inflamadas após o discurso e o dia seguinte. Foi preciso ir ao britânico The Guardian para encontrar Luiz Inácio Lula da Silva: "Bolsonaro quebra silêncio eleitoral, mas se recusa a reconhecer a vitória de Lula".

Ilustração de Carvall mostra, num fundo bege e marrom, uma pessoa de lado, usando uma bermuda azul e uma camiseta amarela, como o uniforma da seleção brasileira de futebol. Nas costas, ela tem um mecanismo de dar corda, como nos brinquedos antigos. Está com o braço e a mão direita estendidos, em alusão a uma saudação nazista.
Carvall

Adianta ler o discurso de Bolsonaro de forma tão literal? O país só sabe que o presidente desistiu de contestar o resultado das urnas graças a uma fala de corredor do ministro Edson Fachin, na quinta-feira (3), não menos literal: em encontro no STF, o mandatário "utilizou o verbo 'acabar' no passado". Acabou? É pouco para quem passou quatro anos ameaçando, no gerúndio.

É natural que exista um esforço de acomodação das instituições, o país está tensionado e o caminho para a pacificação será longo. Só que isso não autoriza atenuar a figura do presidente ou de seu discurso nem o gesto do cidadão que levanta o braço à frente. Se não sabe que é crime, vai aprender.

Derrapamos

Uma nota sobre Steve Bannon alegando fraude no Brasil não ponderava no título que o ex-estrategista de Donald Trump não tinha nenhuma prova do que falava. O título chegou a ser alterado, mas o enunciado original já navegava livre com seu sentido fático na internet mostrando que até a Folha confirmava a mutreta que nunca existiu na eleição.

Uma nota sobre Nelson Piquet dizendo que queria ver Lula no cemitério reproduzia vídeo com a fala, ampliando a divulgação do conteúdo. Dava para dar a notícia sem aumentar o alcance da ameaça. Dava ainda para evitar o eufemismo no subtítulo de que o tricampeão "polemiza". Piquet não polemiza, está sendo golpista como já foi racista.

Um tuíte de colunista carregava nas maiúsculas para dizer que o MTST estava enviando "milhares às ruas para desarmar barricadas bolsonaristas". Adianta pôr água na fervura do presidente e soprar o braseiro das ruas?

Outro tuíte de colunista denunciava o pedido de golpe militar de redes bolsonaristas reproduzindo a convocação para os atos de quarta-feira (2). Jornalistas ainda temos a fantasia de que todos lerão nossas denúncias como tal. Isso nunca foi verdade e, na era digital, as pessoas simplesmente acreditam no que querem acreditar. Até que o Xandão foi preso, que os tanques estão saindo do quartel e que Bolsonaro defende a Constituição. O jornalismo não precisa contribuir.

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