José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Retomamos a Paulista?

Junho de 2013, dez anos depois, continua assombrando o país e o jornalismo

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"Câmara aprova marco temporal em nova derrota do governo Lula", escreveu a Folha na noite de terça-feira (30). A manchete do impresso, na manhã seguinte, tinha formulação semelhante. Pela leitura do jornal, a derrota do governo federal, o fato político, era mais importante do que o retrocesso socioambiental promovido pelos deputados. A redução do ocorrido a fato político era exatamente o pretendido pelos parlamentares, que transferiram a discussão do campo técnico para o ideológico. Boa parte da imprensa, não apenas a Folha, caiu nessa espécie de armadilha de foco.

Na mesma terça-feira, horas antes, os jornais publicavam que a Febraban havia anunciado um protocolo antidesmatamento, vinculando concessão de crédito à capacidade de rastreabilidade dos rebanhos. Bancos e frigoríficos aderiram com empolgação à medida, que visa antecipar futuras exigências da legislação europeia. No lançamento da iniciativa, ninguém perguntou ou respondeu sobre marco temporal ou desmonte concomitante dos ministérios de Meio Ambiente e Povos Indígenas.

O fato econômico se impôs, nova armadilha, mas não logrou alcançar seu destinatário principal. Despacho no exterior da Associated Press, na quinta-feira (1º), imputou a semana de derrotas ambientais no país ao "beef caucus", sugestiva tradução escolhida pela agência para designar a bancada ruralista local. O esforço ESG do maior exportador de "beef" do mundo foi para o vinagre em apenas dois dias.

Os exemplos da semana mostram como é fácil escorregar na hora de estabelecer o foco das notícias, mas isso é do jogo. Problema mesmo é quando o processo acaba compreendido pelos leitores como conveniência, conivência ou algo pior.

Há exatos dez anos, em junho de 2013, o país começava a ferver sem entender direito de onde vinha o fogo. São Paulo se via atazanada por uma molecada que, revoltada diante de vinte centavos a mais no preço da passagem de ônibus, interrompia sem dó grandes artérias da cidade. A coisa chegou a tal ponto que, no dia 13, o primeiro editorial da Folha chamava a atenção já pelo título, curto, grosso e em tom militar: "Retomar a Paulista".

Sobre um fundo verde, mulher segura um cartaz que simula uma página de jornal. Ela usa uma camiseta amarela com filetes verdes. Uma foto no cartaz traz a mesma imagem da cena principal, e, dentro dela, se repete, como em jogo de espelhos
Carvall

O texto, visto com olhos de hoje, é assustador: "Pior que isso, só o declarado objetivo central do grupelho: transporte público de graça. O irrealismo da bandeira já trai a intenção oculta de vandalizar equipamentos públicos e o que se toma por símbolos do poder capitalista"; "O direito de manifestação é sagrado, mas não está acima da liberdade de ir e vir"; "É hora de pôr um ponto final nisso"; "No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei".

A força da lei pesou e machucou bastante no desenrolar daquela quinta-feira. Uma repórter deste jornal foi alvejada no olho por uma bala de borracha disparada por um agente da segurança pública. Recuperou-se plenamente, sorte que outros não tiveram.

O resgate do controverso editorial não é do ombudsman, mas de um leitor atento que, diante da primeira reportagem da Folha sobre a efeméride, publicada no último fim de semana, sentiu falta do ingrediente que percebe como "estopim para o gigantismo" que os atos adquiriram na sequência: a brutalidade da PM paulista. (Em resposta a sua mensagem, a editoria de Política informou que a violência policial será explorada em um capítulo futuro da série.)

O mesmo leitor vai adiante e indaga se a Folha, assim como O Estado de S.Paulo, que publicou opinião parecida à época, não estaria disposta a refletir sobre seu papel naquela cobertura. "Ninguém esperará uma retratação desses editoriais, mas talvez a análise atual daqueles eventos, já com distanciamento de dez anos, possa permitir uma reflexão da imprensa a respeito de certos vieses e posicionamentos que acabaram por incentivar a violência policial contra cidadãos e jornalistas", escreveu.

É inevitável extrapolar o questionamento para a Lava Jato, em que grande parte da mídia acolheu os vazamentos seletivos da Força Tarefa de Curitiba, cumprindo função estratégica na operação, como constatado a partir da Vaza Jato. É autocrítica que especialmente leitores da Folha insistem em aguardar. Longe de estabelecer relações entre 2013 e Lava Jato, a discussão é sobre o comportamento da mídia diante de sintomas agudos de um sistema político doente.

Em entrevista ao Valor, o cientista político Sergio Fausto afirmou que "a compreensão sobre 2013 ainda está em disputa, é um fato recente". Foi um divisor de águas na política brasileira, mas "não produziu mudança institucional positiva que melhorasse a qualidade do Estado brasileiro e a qualidade da democracia".

É preciso discutir o quanto a mídia colaborou para essa não mudança e o que poderá fazer para contribuir em um país que continua sob risco democrático. Palavras de ordem, já sabemos, não funcionam.

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