Em março de 2019, um supremacista invadiu duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia, e fuzilou 51 pessoas. Transmitiu o massacre em rede social, e a parte mais absurda do vídeo de quase meia hora é seu deslocamento de carro entre um ataque e outro, conversando com a câmera. Em uma esquina, ele para antes da faixa e espera pedestres atravessarem. A insólita cena parece estar ali só para amplificar o horror que continua a seguir.
O vídeo foi logo derrubado pelas plataformas e apenas alguns quadros foram distribuídos pelas agências internacionais. Certamente habita os porões da internet, mas a autocensura da imprensa, das redes e das autoridades o baniu.
Outros tempos. Na última semana, o exército israelense publicou no X, o ex-Twitter, uma espécie de não imagem, um fundo preto com dizeres em capitulares: "Esta seria a foto de uma mulher grávida morta perto de seu bebê natimorto decapitado e arrancado de sua barriga pelos terroristas do Hamas. Devido às regras desta plataforma, nós não podemos mostrar isso a você".
A descrição chocante também aparece em um relato da revista The New Yorker, que conversou com sobreviventes do kibbutz Be’eri, talvez o primeiro ponto atingido pela facção e pela carnificina que patrocinou no dia 7 de outubro.
Outros tantos episódios mereceram registro em diversos veículos, imagens cruas foram exibidas a jornalistas. O embaixador de Israel, tablet em punho, mostrou algumas no púlpito da ONU. Em apenas uma edição do Jornal Nacional, três porta-vozes e um ministro israelense apareceram falando, um deles em portunhol. Na Primeira Página da Folha, fotografia de uma instalação com ursos de pelúcia manchados de vermelho lembrava as crianças sequestradas.
Não é apenas uma questão de propaganda, mas de como ela é feita. Nunca uma ausência de informação, uma não imagem, serviu tanto como argumento. Ao mesmo tempo, nunca uma atrocidade foi tão divulgada: pelos perpetradores, dentro da lógica de glorificação do terror como vingança contra o inimigo, marca deste século; pelos atingidos, como se fosse necessário a Israel comprovar tudo aquilo que aconteceu ou justificar o que vai ocorrer em retaliação.
Sobra descrença. Confrontado com a tragédia em Gaza, Joe Biden declarou que o número de vítimas palestinas não é confiável. Alguns veículos passaram a citar os dados do ministério da Saúde do Hamas com o adendo "não podem ser verificados". Outros, como The Guardian, The Washington Post e Associated Press, enfrentaram a correnteza para explicar a razão de publicá-los.
The New York Times projetou o conflito urbano mais sangrento desde a Segunda Guerra, com enormes desafios para Israel. O último grande confronto do tipo, em Mosul, deixou 10.000 civis mortos. O Hamas tem de três a cinco vezes mais combatentes do que o Estado Islâmico tinha no Iraque.
Pode soar insuportável, mas está apenas começando.
Lula fala
Em resposta a uma pergunta da Folha, Luiz Inácio Lula da Silva afirmou que a meta fiscal de 2024 não precisa ser zero. Os mercados despencaram em seguida, com repercussão também no universo político.
Neste sábado (28), o jornal voltou ao expediente que o caracterizou no advento de Lula 3, os editoriais de Primeira Página. Voltou também ao tom mais agressivo, a partir do título "Lula sabota o país".
O jornal parece querer sublinhar que se opõe ao presidente.
Cavando polêmica
Demétrio Magnoli leu a coluna do último domingo (22). O ombudsman agradece a leitura.
Não só leu como concordou com a tese única do artigo, a necessidade cada vez maior de jornais apelarem para OSINT, a perícia de dados e imagens, na cobertura da guerra. Tropeçou, porém, nos primeiros parágrafos, quando o texto fazia um breve apanhado da confusão que a explosão no hospital em Gaza provocou no planeta, sem tomar lados.
Magnoli não entendeu assim ou achou que o meio estava em outro lugar. Também no último domingo, escreveu que a imprensa "precisa divulgar notícias legítimas, mesmo quando contrariam as inclinações ideológicas do jornalista". Foi além e apontou para matérias que, segundo ele, deveriam ter sido citadas, sugerindo desatenção do ombudsman. Recomendou não uma, mas duas vezes a leitura de "uma análise meticulosa" do Guardian que respaldava a versão israelense para o episódio.
O artigo do diário inglês havia sido lido pelo ombudsman, tem dois erramos e ensejou o comentário feito no terceiro parágrafo da criticada coluna, sobre o episódio ter provocado correções mundo afora. Já a versão israelense sofreu reparos de análises OSINT do Times e do Post nos últimos dias.
Estamos longe das verdades definitivas, ainda que inundem o debate nesta guerra.
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