José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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A banalidade do terror

Hamas viraliza com atrocidades que o planeta reproduz sem prurido

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Em "Munique", filme de Steven Spielberg sobre um comando de Israel que sai a vingar o massacre de 11 esportistas judeus nos Jogos Olímpicos de 1972, a cena é sutil. Uma assassina de aluguel, responsável pela morte de um integrante do bando clandestino formado para a missão, é eliminada a tiros. O corpo nu, cheio de sangue, jaz em uma cadeira e incomoda um dos executores, que resolve cobri-lo. Perturbado, o líder do time desnuda de novo a mulher, deixando a visão mais chocante para quem a encontrasse. Naquele exato momento a vingança transborda e vira sordidez.

Na segunda-feira (9), a Folha publicou texto sobre um dos tantos episódios extremos do último fim de semana, a jovem alemã agredida inconsciente na caçamba de uma caminhonete. O jornal foi detalhista em seu enunciado: "Mãe reconhece filha em vídeo de mulher seminua e sequestrada em Israel". A questão é se o "seminua" dá peso à notícia ou é elemento de sensacionalismo.

Apelação não faltou nesses dias coalhados de certezas, como a do comentarista em uma mesa-redonda de noticiário: é legítimo Israel matar civis inocentes em Gaza porque o Hamas matou civis inocentes em Israel. Não é legítimo nem razoável, escreveu António Guterres, secretário-geral da ONU, em artigo no jornal The New York Times na sexta-feira (13), mas é o que vai acontecer. O jornalismo ganha quando se atém aos fatos, que sobram em uma guerra tão anunciada.

Ou apanha. A emissora britânica BBC foi criticada por não chamar os militantes do Hamas de terroristas. As críticas iam de espectadores ao ministro da Defesa do Reino Unido, passando por um grupo de advogados renomados da ilha. A emissora faz isso porque sempre fez, explica John Simpson, editor de exterior. Nem os nazistas na Segunda Guerra foram chamados de "maus".

"Não é trabalho da BBC dizer quem deve ser apoiado e quem deve ser condenado. Quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Regularmente mostramos governos e entrevistados qualificando o Hamas como uma organização terrorista. O ponto é que não usamos nossa voz para dizer isso. Nosso negócio é apresentar fatos ao público e deixá-lo elaborar sua própria opinião", explicou.

Uma pomba branca da paz, jaz morta no chão. Uma tarja preta cobre a cara do animal. O fundo é marrom.
Folhapress

Essa é a regra na BBC e em muitas outras organizações de mídia profissional. É jornalismo em estado puro, algo que deve soar como física quântica por aqui, onde a guerra se futebolizou, como quase tudo nesta era de redes sociais.

No começo da semana a Folha decretou que o Hamas era um grupo terrorista. É do feitio do jornal delinear seus padrões diante de acontecimentos históricos. Apanhou também. Outro comentarista da mesa-redonda lembrou que o Hamas explode homens-bomba há décadas, sugerindo certo oportunismo tratá-lo assim só a partir do visto em 7 de outubro. Leitores indagaram se o jornal também chamará Israel de estado terrorista após o esperado estrago em Gaza e na Cisjordânia se estabelecer.

Teve quem foi mais longe, entendendo o gesto do jornal como um novo passo à direita. Talvez seja importante parar de olhar para os lados e se concentrar no quadro maior.

"O Hamas é muitas coisas", afirmou um antigo correspondente em Jerusalém do jornal The Guardian. A facção é também uma grande operadora de mídias sociais, que filmou seus ataques e os pôs no ar.

Uma nova maneira de mostrar a guerra, de imenso impacto, comparável ao advento das transmissões de conflitos ao vivo no início dos anos 1990. Auge então dos canais a cabo, hoje em declínio, como parte importante da imprensa profissional. As grandes imagens atualmente estão, se reproduzem e se deturpam no TikTok. Para quem duvida da estratégia de mídia, reportagem do jornal The Washington Post trouxe números: #Palestine angariava 27,8 bilhões de views contra 23 bilhões de #Israel até o meio da semana.

Se há duas décadas era preciso sequestrar e pilotar jatos contra arranha-céus, hoje basta sangue e horror em vídeos de celular. Não há mais a censura de governos e da imprensa internacional, que um dia decidiu refrear a disseminação de imagens de soldados e jornalistas degolados pelo Estado Islâmico. Agora até o primeiro-ministro israelense publica fotos de bebês profanados, polêmica iniciada por um de seus generais. O Exército de Israel, por sinal, é outro grande produtor de conteúdo.

Tudo em ambiente de permissividade inédita, já que o X, antigo Twitter, antes a grande vitrine do "breaking news", perdeu os freios da moderação desde que passou às mãos de Elon Musk. Esse aspecto pouco sensibiliza o debate público, mas a dinâmica deste ano já é muito diferente da inaugurada pela guerra na Ucrânia.

Enquanto isso, preferimos discutir para que lado fica a esquerda e a direita, empurrando corpos e violências inomináveis para frente. O terror pode ser do Hamas, mas quem o banaliza somos nós.

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