José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Os arquivos abertos da guerra

Diante de fontes oficiais inconfiáveis, jornalismo abraça a perícia de dados

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A explosão atinge o hospital em Gaza e dedos de meio mundo apontam para Israel. A primeira imagem vai ao ar na rede Al Jazeera. O Exército israelense reage com a publicação de outros vídeos, o foguete teria partido de Gaza. Surge um diálogo de extremistas comprovando a tese do chabu. Um jornalista aponta descompasso nas gravações, o Exército, sem mais, derruba a postagem.

Em Tel Aviv, Joe Biden, abastecido por investigação própria de seu Departamento de Defesa, declara que o ataque "parece feito pelo outro time".

"A Associated Press não conseguiu verificar de forma independente as acusações ou evidências mostradas pelas partes", escreve a agência. O jornal The Washington Post admite que não teve condições de verificar o número de mortos e que precisou "confiar em organizações locais". Veículos pelo mundo fazem correções em reportagens, recuam de relatos e fatos publicados. A BBC britânica é acusada de difamação pelo governo israelense.

A Folha apanha pelos dois lados, como de hábito. Leitores se queixam de o jornal apontar para uma "guerra de versões" e não para Israel, assim como outros condenam a simples citação da suspeita contra o país. "Faltou apuração, faltou jornalismo", exorta um deles. Que jornalismo é possível em tempos de guerra?

Não é uma questão de lado nem de chocolate, as redes sociais estão aí para isso. A discussão é o que fazer diante da desinformação, da informação fabricada e de fontes oficiais e oficiosas inconfiáveis. Para John Burn-Murdoch, colunista e repórter de dados do Financial Times, uma das poucas saídas que resta para a mídia profissional é o OSINT, acrônimo de "open source intelligence", inteligência ou informação retirada de dados públicos. Em um comentário no X, o ex-Twitter, Burn-Murdoch observa que grandes jornais como Post , The New York Times e o próprio Financial Times têm equipes de OSINT, mas que a maior parte da imprensa está longe da ferramenta.

3 mísseis pretos partem de uma pasta de arquivo de computador. O fundo é branco.
Folhapress

Com seu uso, o New York Times, em investigação de oito meses, reconstituiu o massacre de Butcha, na Ucrânia, e o Post provou que a guarda-costeira grega prevaricou no naufrágio que matou 750 imigrantes no Mediterrâneo em junho deste ano. As conclusões foram extraídas de mapas, ligações telefônicas, redes sociais e satélites, um bolo de pistas cruzadas a partir de arquivos abertos.

"É diferente do jornalismo de dados. Está mais para a perícia, para a investigação policial. É descobrir pelo tamanho da sombra onde exatamente uma determinada fotografia foi tirada", afirma a jornalista Cristina Tardáguila, fundadora da Agência Lupa.

"A verdade é que foge do jornalismo, consiste em achar e em entrevistar um metadado", declara a especialista, que protagoniza um elucidativo episódio do podcast Café da Manhã, publicado pela Folha na sexta-feira (20), sobre como as redes sociais estão sendo usadas no conflito.

Há implicações éticas na prática. A forma como se obtém a informação importa na imprensa profissional, regulada por leis e pelas regras de cada veículo. Vasculhar arquivos é uma coisa, se passar por alguém para fazer isso é hackear, por exemplo. A Abin da era Jair Bolsonaro fez ainda pior.

"A coisa está num estágio tal que já se detecta arquivos manipulados para concorrer com times de OSINT. A imagem de uma atrocidade, por exemplo, ganha versões que empurram a responsabilidade para todos os lados", conta Tardáguila.

No conflito atual, os ataques do Hamas foram dissecados, e os bombardeios a Gaza são monitorados diariamente.

Com a mesma lógica de trabalho, parentes e amigos de vítimas do Hamas criaram mutirões de busca por sequestrados. Publicações da facção são comparadas com imagens dos desaparecidos. Havendo combinação, a tentativa é estimar as localizações por georreferenciamento. "É claro que o governo pode e vai fazer isso, mas existem muitas prioridades. Com todos trabalhando, somos mais rápidos", disse um voluntário, ex-militar, ao Times. Há apoio corporativo, do Google a empresas de tecnologia. Israel tem expertise na área, tanto que a arapongagem contra autoridades, advogados e jornalistas no Brasil utilizou um software de lá.

Na mídia, quem não aderir ao sistema, diz Burn-Murdoch, estará à mercê das declarações oficiais. Ruim em tempos normais, péssimo "quando as fontes claramente querem desinformar", como nesta guerra. O jornalista não só defende o investimento em OSINT, ainda que com parcerias externas, como o coloca como vital para o futuro da atividade. "A mídia de massa vai chegar lá, mas precisa se mexer rápido para manter a confiança e a relevância. Ou os leitores procurarão isso em outro lugar."

Trazendo o debate para mais perto, em que orçamento apertado caberiam novas despesas? Talvez no que queira sustentar um jornalismo que se distingue das mídias sociais.

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