José Manuel Diogo

Diretor da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Brasileira, é fundador da Associação Portugal Brasil 200 anos.

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Viver em um mundo online está nos deixando indiferentes?

Caso de idoso cujo corpo foi achado em casa após três anos de sua morte me fez refletir sobre isolamento e distância da família

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Ontem foi bom. Acordei pela manhã recebendo um beijo do meu pai e oferecendo beijos aos meus filhos. Em Portugal, 19 de março é o Dia dos Pais, e a gente se quer. Mas tudo aconteceu online e não pude abraçá-los.

O meu pai chama-se Manuel, tem 87 anos e ainda gosta muito de dirigir. Na chamada de vídeo que fizemos, por trás do volante, perguntou por mim, por que não estava com ele. Respondi —o meu trabalho obriga-me a estar no Brasil, pai. Mas eu deveria ter estado com ele. Também não estive com meus filhos. Só pela internet.

Em um viés de egocentrismo, percorrendo as notícias, chamou-me a atenção a manchete do Diário de Coimbra, um jornal português onde há mais de dez anos também sou colunista — "Estava morto em casa há mais de três anos".

Capa do jornal português Diário de Coimbra, de 17 de março de 2024, que estampa na manchete a história de um homem encontrado morto depois de três anos - Reprodução/Diário de Coimbra

Foi na aldeia de Sarzedo, uma pequena povoação do município de Arganil, que a história aconteceu; simultaneamente um mistério digno de roteiro de Hollywood e triste tragédia espelhando nossos tempos. Esse homem, também pai, fora encontrado morto em sua casa— três longos anos após o seu último avistamento.

A pandemia, esse divisor de águas na história recente, terá marcado o início de seu isolamento, mas a verdadeira questão mantém-se: como pode alguém desaparecer assim, sem deixar rastro, sem que ninguém dê pela sua falta?

Um novo vizinho, recém-chegado a Sarzedo, deparou-se com a visão macabra de um cadáver velho, tombado, encostado a uma parede nas traseiras do seu quintal. Um quadro dantesco, mostrando que, mesmo em comunidades pequenas, o isolamento consegue ser mortal.

A Família —aqui com "F" maiúsculo—, essa estrutura que deveria ser o último reduto contra a solidão, tinha falhado. Na aldeia todos diziam que um filho o levara consigo durante a Covid, mas esse mesmo filho nunca mais procurou pelo pai. Como é possível que os laços de sangue se desfaçam assim, sem mais nem menos?

Este caso trágico em Sarzedo, Portugal, 600 habitantes, levanta questões profundas sobre o tecido social em que todos hoje, independentemente do lugar, estamos inseridos. Cada vez mais conectados virtualmente e mais distantes fisicamente.

Celebro o "dia do pai" (que em Portugal se fala no singular mesmo) falando com o meu pai em modo remoto. Penso para mim que, mesmo não estando com ele nesse dia, o meu amor é genuíno. Mas será mesmo?

O Dia dos Pais, das Mães, dos Irmãos, o Natal e o Réveillon— todas essas datas— correm o risco de se tornar apenas eventos de mercado, desprovidos de significado real, se não refletirmos sobre o valor das relações humanas.

O pai de Sarzedo é uma metáfora pungente para o isolamento que muitos enfrentam, tantas vezes invisíveis aos olhos da sociedade. Este caso serve de alerta: ninguém está imune ao esquecimento.

O verdadeiro significado do Dia dos Pais, e de qualquer celebração que preze os laços humanos, reside na nossa capacidade de estarmos presentes na vida daqueles que amamos e não permitirmos que ninguém seja deixado para trás.

No meio da correria do dia a dia, preciso esforçar-me mais. Precisamos ser melhores e manter acesa a chama da comunhão e do afeto. Conseguiremos aprender com este trágico esquecimento? Ninguém deveria enfrentar seu fim sozinho, esquecido no canto de uma casa vazia.

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