Josimar Melo

Jornalista, crítico gastronômico, curador de conteúdo e apresentador do canal de TV Sabor & Arte

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Josimar Melo

Acordar no pesadelo

O casulo aéreo nos alivia da realidade, mas já estão instalando wifi no avião

Há um alívio em acordar de um pesadelo, o sonho ruim do qual a aurora nos livra. Bem melhor do que quando, de uma noite comum, despertamos para um pesadelo —o que já me ocorreu após viagens que pareciam normais ao serem marcadas, mas trouxeram tempestades no final do arco-íris.

Rodrigo Yokota

Já comentei aqui a adorável privacidade do avião, o casulo aéreo. Ela já foi maior no passado. Mas continua existindo, no ar, uma certa blindagem em relação à vida pulsante lá embaixo. O que me faz preferir viagens durante o dia, naquele túnel de vácuo que permite, por horas, estar isolado do telefone e das mensagens instantâneas, e mergulhar num silêncio introspectivo de pensar, ler, escrever, sem falar de cochilar e beber.

Resta alguma angústia quando sabemos que em solo algo está rolando —por exemplo, a bola na Copa do Mundo. Mas numa companhia aérea brasileira sempre podemos contar com a boa vontade do piloto benevolente que compartilha as notícias com a plebe desplugada e, às vezes, abençoada na ignorância (“aqui fala o comandante, para avisar que a Alemanha já marcou o quarto gol”). Numa companhia estrangeira nada saberíamos (a menos que, no mesmo jogo, o maldito piloto fosse alemão).

Na minha história recente acordei no pesadelo duas vezes, e infelizmente o tema não era futebol. A primeira foi no dia 9 de novembro de 2016. Eu voltava de um paraíso francês no Caribe, St. Barths. Quando embarquei, acompanhava de longe as eleições nos Estados Unidos, com prognósticos prováveis de eleição da candidata do partido Democrata, Hillary Clinton.

Na escala em Miami, porém, fui surpreendido pela realidade que se desenhava. As tevês mostravam as prévias da apuração, apontando uma tendência favorável à vitória de Donald Trump.

Parecia assustador, e inacreditável, até para os analistas das tevês americanas. Entrei no avião para São Paulo com aquele incômodo na cabeça: seria possível?

Ao pousar em Guarulhos, vi confirmada a notícia. Um choque —não que eu simpatizasse com Hillary, nem acreditasse na democracia americana (cujo vencedor, aliás, perdeu por 3 milhões de votos), mas no mínimo porque dá calafrios saber que um boçal (que, além de retrógrado até o último fio da chapinha, é um celerado a olho nu) controlaria o maior botão nuclear do planeta.

Outro pesadelo dolorido me despertaria semanas atrás, em viagem a Bogotá. Saindo do Brasil no dia 28 de outubro num voo das 15h, somente à noite, chegando a meu destino, e após nervosa espera pela conexão wifi do aeroporto, soube do resultado das eleições a presidente do Brasil.

Verdade que já previa o resultado. Há anos o movimento conservador explorava os temores da classe média e das multidões empobrecidas em prol de uma saída autoritária —gigantesco esforço que incluiu derrubar, via 300 corruptos, uma presidente eleita, e encarcerar às pressas (contra a Constituição) o candidato mais popular.

Nos dias anteriores, para assegurar a vitória do nosso Trump, uma avalanche reacionária incluiu, como mostrou a Folha, uma enxurrada de milhões em propaganda ilegal na internet (com joias como a calúnia de estupro de uma criança pelo candidato democrata); e o igualmente criminoso “vazamento”, por Sergio Moro (correligionário do candidato vencedor), da requentada delação sem provas de Palocci.

Nosso neofascista é algo mais aterrador do que Trump. Há semelhanças, como a campanha suja pela internet inspirada pelo mesmo americano abjeto, Steve Banner. Ambos apelam para os piores instintos do que há de pior na humanidade. Mas a seu favor, Trump é um cara de sucesso em sua área (a dos empresários inescrupulosos).

Já nosso Bozo, até então, nem sequer isso: em sua área, sempre foi um fracasso: um milico enxotado do Exército com uma patente mixa, porque apesar de sua pregação pela ordem, era indisciplinado e incompetente; e um parlamentar inoperante e improdutivo.

Não tem o botão da guerra nuclear. Mas tem o gatilho do ódio contra a maioria (os pobres) e as minorias.

Foi sua vitória —que já estava anunciada, mas foi tristemente acachapante— que me esbofeteou ao sair do avião em Bogotá.

Em casos assim, o isolamento no casulo aéreo pode nos dar alguns momentos extras de alívio antes do pesadelo da vida real. Mas cada vez mais estão instalando wi-fi nos aviões. A tecnologia anda para frente, a sociedade corre para trás.

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