Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Ao contrário dos de Bellow, personagens de Roth são de carne e osso

Leio o primeiro para entender quem eu sou e o segundo para compreender homens com que me relacionei

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Em 1976, a escritora Vivian Gornick acusou Saul Bellow e Philip Roth de ódio às mulheres. Mas será mesmo que ela tem razão?

Hoje, escrevo com o intuito de questionar esta acusação que, apesar de muito antiga, insiste em marcar presença naqueles círculos literários em que, muitas vezes, a produção textual de um autor é relegada a segundo plano, enquanto interpretações sobre sua vida tornam-se o verdadeiro alvo da curiosidade dos leitores e da crítica.

Saul Bellow é um dos meus escritores prediletos e, em sua obra, a masculinidade não deve ser tratada como um valor absoluto. Afinal, as suas personagens —tal Augie March, Herzog, Henderson e Mr. Sammler— não são homens pura e simplesmente, mas ícones que nos permitem a reflexão da busca do individuo moderno por autonomia: “... o caráter de um homem é seu destino, como diz Heráclito...[Mas] todo mundo sabe que não existe precisão nem apuro na supressão; se você corta uma coisa, acaba amputando o que está ao lado.”

Do início ao fim de sua carreira literária, Bellow apresenta-se como um autor que ironiza as próprias tentativas de emprestar ordem ao mundo através de sofisticadas elucubrações, seja através da antropologia ou do materialismo dialético, da psicanálise reichiana ou de transcendentalismo de Ralph Waldo Emerson.

Assim, a obra de Bellow revela o indivíduo como herdeiro do velho Fausto, de Goethe: alguém que estudou de tudo um pouco, mas no fim de contas descobre-se ignorante da própria vida.

Daí a busca desenfreada dos seus protagonistas por experiências, como no caso de Augie March, que se apresenta de supetão: “Sou americano, nascido em Chicago —Chicago, aquela cidade sombria— e faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer; livre estilo.”

E de Eugene Henderson, um homem insatisfeito com a vida que leva criando porcos em um rancho no interior dos Estados Unidos, ciente de que, apesar de todo seu dinheiro, falhou a si próprio por não ter coragem para seguir a própria vocação. A vida emocional de Henderson soçobra quando ele reconhece que não conseguiu fazer as pazes com a memória do pai, ao deixar que suas frustrações passadas isolem-no dentro da própria família.

Desesperado e vendo-se sem alternativas, Henderson viaja para a África em busca de experiências e contatos humanos que inspirem coragem e resiliência, o que o leva a intuir que: “O mundo pode ser estranho para uma criança, mas ela não o teme do mesmo modo que um homem o teme. Ela se maravilha com ele. Mas o homem adulto, em geral, o receia. E por quê? Por causa da morte. Então ele arranja um jeito de ser abduzido como uma criança. De modo que o que aconteça não seja sua culpa. E quem é esse sequestrador —esse cigano? É a estranheza da vida —uma coisa que torna a morte mais remota, como na infância.”

Como sugerido por Paule Lévy, autora de "Women and Gender in Bellow’s Fiction", a estranheza que as personagens de Bellow sentem diante da vida transformam-nas em indivíduos marginais, alienados e à beira da loucura. Assim, adverte Henderson: “Devido à peculiaridade da minha condição mental, o mundo não era o mesmo.”

Ou Herzog, que o seu desatino dá-lhe a impressão de observar o mundo de longe, por detrás de uma barreira: “Meu comportamento dá a entender que existe uma barreira contra a qual eu venho fazendo pressão desde o início, a vida toda, com a convicção de que é necessário e de que alguma coisa deve vir daí. Talvez, eu consiga atravessá-la.”

Quem sabe seja por isso que as suas idealizações de amigos, de conhecidos e do sexo oposto nunca passem de projeções e fantasias, carecendo de realidade própria, porque o indivíduo que as descreve jamais consegue escapar das suas próprias teorias sobre o mundo e o comportamento humano.

Sendo assim, acho complicado acusar Bellow de misoginia. Afinal, durante a leitura dos seus livros, estamos conscientes de que nada do que os seus protagonistas percebem corresponde à realidade.

Já uma experiência antagônica se apresenta ao entrarmos em contato com o universo de Philip Roth. Confesso que, somente agora, após a morte de Roth, tive a oportunidade de mergulhar em sua obra para compreender um pouco do fascínio e da repulsa que as suas personagens inspiram.

Diferentemente das criações de Bellow —que quase sempre incorporam e questionam um ideal de humanidade—, as personagens de Roth, como Alex Portnoy, David Kepesh e Coleman Silk são homens de carne e osso, cujos dramas e imperfeições representam o conflito contra os limites que lhes são impostos pela experiência de uma masculinidade forjada em contextos sociais específicos.

Como bem explica Howard Jacobson em recente entrevista para a BBC: em Roth a masculinidade, o judaísmo, a individualidade e a história são elementos indissociáveis. Assim, minhas motivações para ler Bellow e Roth são distintas.

Costumo dizer que leio Bellow para entender um pouco mais sobre quem eu sou, enquanto Roth me ensina a compreender os homens com os quais me relacionei ao longo da vida: todos eles incertos de si e em revolta contra os próprios desejos.

Inseguros porque a contemporaneidade lhes retirou a possibilidade de exercerem os seus papéis tradicionais; revoltados porque já não mais existe correspondência entre a moral que aprenderam e a experiência nua e crua da vida.

Não há duvidas de que, tanto para Bellow como para Roth, a possibilidade ou não de formação do sujeito autônomo constitui-se como temática central dos seus romances. No entanto, em Roth torna-se ainda mais evidente a necessidade de compreendermos o corpo e a sexualidade como partes integrais da subjetividade.

Para Debra Shostak, autora de "Philip Roth - Countertexts, Counterlives", em Roth, a importância do corpo na construção da identidade representaria a oposição do autor ao binarismo que constitui nossa maneira de pensar sobre a subjetividade: representado por binômios como mente e corpo, sujeito e objeto, masculino e feminino etc.

Segundo a autora, as personagens de Roth experimentam a contradição entre a imagem que fazem de si através das experiências dos próprios corpos. Sendo assim, o foco de Roth na masculinidade é uma faca de dois gumes. Se, por um lado, suas personagens parecem validar comportamentos machistas, por outro, servem de crítica aos ideais de masculinidade forjados a partir da segunda metade do século 20.

Shostak argumenta que romances como "O Seio" e "O Animal Agonizante" ambos protagonizados por David Kepesh— seriam exemplos de como Roth apresenta uma reflexão sobre identidade e gênero pautada na ambivalência que sentimos a partir de experiências dos nossos próprios corpos.

Destarte, ao provarem a realidade e as limitações dos seus corpos, as personagens de Philip Roth percebem que nem sempre as ideologias que adotam para justificar suas ações dão cabo de explicar seus mais íntimos anseios e motivações.

Em "Portnoy", a masturbação excessiva do personagem principal é um sintoma de não aceitação ou revolta contra esta ambivalência fundamental. Ao tempo em que a formação da identidade masculina é condicionada pela virilidade, tornar-se homem significa reivindicar esta virilidade para si, em vez de compreendê-la como um corpo estranho.

Esta é a lição que extraímos de David Kepesh em "O Seio": ao se transformar em uma mama gigantesca, o protagonista do romance passa a vivenciar gênero e identidade de forma circunstancial e fluida. Mais tarde, em "O Animal Agonizante", o mesmo personagem reencontra esta fluidez ao defrontar-se com a própria velhice e a decadência do corpo de sua amante acometida de câncer. 

Se as personagens femininas de Roth aparentam ser monstruosas é porque —em suas performances— os protagonistas masculinos não estão no controle das suas próprias sexualidades. A mulher assusta e encarna papéis míticos, porque sua presença reflete a ansiedade de personagens para os quais a experiência da masculinidade não é individualizada, permanecendo-lhes igualmente exterior, figurativa e assustadora.

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