Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Vale a pena se refugiar na literatura em momentos de crise?

Reivindicar nossa humanidade por meio da leitura nos permite sobreviver e dar sentido ao cotidiano

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Em um dos capítulos de “Diante do Extremo” (1991) o crítico Tzvetan Todorov comenta como a contemplação do belo pelos prisioneiros dos campos de extermínio nazistas e dos gulags soviéticos deu-lhes a oportunidade de transcender —mesmo que por raros momentos— a miséria a que estavam submetidos. Entre os vários depoimentos colecionados por Todorov, temos o célebre relato do psiquiatra Viktor Frankl sobre a sua experiência em Dachau:

“Por vezes acontecia, num anoitecer em que estávamos deitados no chão, na terra batida do pavilhão, mortos de cansaço depois do trabalho do dia, nossas gamelas de sopa entre as mãos e, de repente, um camarada entrava correndo para suplicar-nos que saíssemos para a Praça de Chamada, somente para não perdermos, apesar do cansaço e do frio que fazia lá fora, um magnífico pôr do sol!”.

Em seguida, Todorov faz referência à escritora Ievguênia Ginzburg, condenada a 18 anos de trabalho forçado na Sibéria, que, no trem que a transportava até Vladivostok, fora desafiada a recitar poesias por pelo menos meia hora —sem consultar qualquer material escrito— sob pena de todos os seus companheiros de vagão completarem a viagem em cárcere batido.

Tzvetan Todorov em palestra no evento Fronteiras do Pensamento, em São Paulo - Zé Carlos Barretta - 5.set.12/Folhapress

Ao relatar este episódio, do qual Ginzburg saiu vitoriosa, Todorov cita uma passagem das memórias da autora de modo a auxiliar-nos a compreender o seu espírito de resistência:

“Meu instinto me dizia que, mesmo que minhas pernas tremessem, mesmo que minhas costas gemessem sob o peso das carriolas carregadas de pedras incandescentes, enquanto a brisa, as estrelas e a poesia continuassem a me emocionar, eu permaneceria viva".

A poesia também se faz presente no relato de sobrevivente do escritor Primo Levi que, em dado momento da sua passagem por Auschwitz, tornou-se muito amigo de um jovem a quem resolveu ensinar italiano em troca de algumas lições de francês.

Ressalto que na tortuosa “Babel” de Auschwitz —a devorar de maneira impiedosa prisioneiros de todas as partes da Europa— conhecer mais de uma língua era uma questão de sobrevivência.

No entanto, ao se reportar a este episódio, Todorov comenta que —para além dessa instrumentalização dos idiomas na luta por sobrevivência no campo de extermínio— Levi ter-se-ia encorajado com a sensação de liberdade inspirada pela camaradagem intelectual, desejando poder compartilhar com o amigo versos do poeta Dante Alighieri, ciente de que, muito mais do que as barreiras da linguagem, o tempo e a precariedade das suas circunstâncias conspiravam contra a preservação daquele laço afetivo.

Em seu próprio relato, Levi comenta a sofreguidão com a qual tentou se lembrar de algumas estrofes de “A Divina Comédia”:

“Quantas coisas mais haveria que dizer, e o sol já está alto, já é quase meio-dia. Estou com pressa, com uma pressa danada [...]. É absolutamente necessário e urgente que ele ouça, que compreenda […] antes que seja tarde demais. Amanhã, ele ou eu poderemos estar mortos, ou nunca mais nos vermos”.

Sobre este episódio em específico, Todorov comenta que a urgência de Primo Levi tinha causa no medo de que ao ver-se incapaz de transmitir o poema para alguém cuja recitação poderia ter feito alguma diferença: “Os versos de Dante teriam habitado uma consciência humana a menos, um momento de elevação espiritual não teria ocorrido e o mundo perderia uma parcela de sua beleza”.

Um dos trechos de “A Divina Comédia” resgatados por Levi refere-se ao mítico comandante Ulisses e diz o seguinte:

“Relembrai vossa origem, vossa essência;
vós não fostes criados para bichos,
e sim para o valor e a experiência”.

Algo que caracteriza os relatos de Frankl, Ginzburg e Primo Levi é a capacidade de cada um desses autores em formar laços, ainda que transitórios, com as pessoas que partilhavam aquele terrível momento das suas vidas, além, é claro, de deixarem-se tocar pela beleza; mesmo quando todas as circunstâncias pareciam-lhes adversas.

Penso bastante sobre isso, quando, em momentos de crise, insisto em escrever sobre literatura. Afinal, será que vale a pena? Nesta semana em que o Brasil bateu o próprio recorde de mortes diárias pela Covid-19, uma amiga comentou a necessidade de encontrar abrigo nos livros.

Ela, no entanto, sabe que, quando tudo nos parece faltar, o refúgio na leitura não nos torna insensíveis à realidade compartilhada e que, ao contrário do que muitos insistem, mesmo os textos mais idílicos podem ser capazes de nos oferecer meios de resgatarmos a nossa humanidade e de preservarmos a memória viva das pessoas que se foram: “Relembrai vossa origem, vossa essência...”.

A reinvindicação por nossa humanidade inspirada pela leitura nos traz ao diálogo com nós mesmos e, notadamente, com todos os outros com quem partilhamos a vulnerabilidade ante o destino. Talvez este protesto, somado aos esforços médicos para mantermo-nos vivos, permita-nos não apenas sobreviver, mas resistir e emprestar algum sentido aos nossos esforços cotidianos.

Gosto bastante da imagem retirada da tradição mística judaica de que o mundo fora criado a partir de um conjunto de letras e números. Um dos autores que melhor invoca essa imagem para si talvez seja o escritor Franz Kafka, cuja leitura exige que estejamos sempre atentos às várias possibilidades interpretativas invocadas pela exata ordem das palavras no texto1.

Em seu diário, por exemplo, Kafka traz-nos a história de um homem que, por alguns instantes, acredita ter visto um anjo no teto do seu quarto:

“‘Um anjo’, pensei eu. ‘Tem estado a voar na minha direcção durante todo o dia e na minha descrença eu não sabia. Vai agora falar comigo’. Baixei os olhos. Quando os levantei de novo, o anjo ainda ali estava, é verdade, suspenso muito abaixo do teto, que se tinha fechado de novo, mas não era nenhum anjo vivo, apenas um busto de madeira pintada, tirado da proa de um barco qualquer, do gênero dos que estão pendurados no teto das tavernas dos marinheiros. Nada mais. O cabo da espada estava feito de tal maneira que servia de base para velas e aparava a cera que caía. Eu tinha arrancado a luz elétrica, não queria permanecer às escuras, havia ainda uma vela e assim subi à cadeira, enfiei-a no punho da espada, acendi-a e então deixei-me ficar sentado noite a dentro à luz pálida do anjo.”

De início, o protagonista acredita que a visão que se formava diante dos seus olhos anunciava a sua libertação: “Era para mim, não havia qualquer dúvida; estava em preparação uma visão que me deveria libertar”.

Porém, ao finalmente constatar que a aparição do anjo havia sido uma ilusão —“Nada mais”— ele, mesmo assim, finda por atribuir algum propósito à miragem, deixando-se iluminar... pela luz daquele mesmo anjo cuja realidade foi contestada!

Ora, quem sabe este não seja um dos principais ensinamentos que a literatura tenha a nos oferecer em momentos de crise? Uma simples vela acesa, apoiada em um boneco de madeira não é o melhor substituto para o que imaginamos ser a claridade proveniente de uma presença angelical.

Mas, e se essa vela acesa por nós mesmos estiver fornecendo a única iluminação de que dispomos? E se aquele for o único anjo que nos assiste? Que lástima seria desperdiçarmos a sua chama quando estamos correndo o risco de uma vez mais tropeçarmos na escuridão!

1 A leitura de Kafka a partir desse ponto de vista será tema de uma próxima coluna.

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