Primo Levi transformou em arte relato sobre horror de Auschwitz

Sobrevivente do campo de concentração na 2ª Guerra, escritor italiano completaria cem anos na próxima quarta (31)

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Renato Lessa

[RESUMO] Sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz, escritor italiano, cujo centenário de nascimento se celebra na próxima quarta (31), ultrapassou os limites do relato testemunhal ao narrar sua experiência como prisioneiro dos nazistas. Por meio de linguagem literária própria, que remete à sua formação de químico, desafiou as reservas dos leitores e estimulou reflexão moral sobre o Holocausto.

“Sou químico. Aportei na categoria de escritor porque fui capturado como partigiano e terminei em um campo de concentração como judeu”
Primo Levi

A citação, retirada do curto e belo ensaio “O Escritor Não Escritor”, reúne de forma admirável e concisa a multiplicidade de facetas presentes na trajetória pessoal e literária de Primo Levi (1919-1987). Indica as dobras fundamentais do percurso de um sujeito cubista, em cujos vincos habitam personas tão diversas quanto as do químico, do escritor, do antifascista, do interno-sobrevivente de Auschwitz, do judeu.

A diversidade, contudo, tanto fascina quanto dificulta o trabalho dos leitores e estudiosos da obra.

O fascínio é autoexplicativo. Tanto a biografia quando a qualidade e a originalidade literária constituem fatores de atração irresistível. As dificuldades impõem-se ao movimento de imaginar uma composição que reúna todos os elementos.

Retrato de 1980 do escritor italiano Primo Levi
Retrato de 1980 do escritor italiano Primo Levi - Marcello Mencarini/Leemage

Na linguagem típica de Primo Levi, os aspectos postos na epígrafe estão dispostos em série, tal como na sintaxe dos elementos químicos compostos. As ligaduras decorrem do acaso: cada condição teria levado à outra, sem nexo de necessidade, pela força errática e dissipada dos acontecimentos.

A obra de Primo Levi abriga forte sensibilidade a composições assimétricas e casuais, cujos efeitos não decorrem tanto da força isolada dos elementos originais reunidos, mas da produtividade combinada de suas ligaduras. Cada uma das facetas pode ser tomada como ponto de partida para a interpretação.

Como intérprete de si mesmo, Primo Levi fez da química uma chave de compreensão de seu trabalho. Em reiteradas oportunidades, atribuiu àquela ciência papel central em sua própria composição pessoal como observador do mundo/escritor. Ela teria sido estruturante de uma “forma mentis” singular, calcada no “hábito mental da consistência e da concisão”, proporcionado pela “arte de separar, pesar e distinguir”.

Habilidades, para Primo Levi, essenciais tanto para quem “se prepara para descrever fatos”, como para os que pretendem “dar corpo à própria fantasia”.

A recepção química da obra foi em grande medida estimulada pelo próprio autor, a partir da década de 1970. Não se tratou, por certo, de uma alucinação idiossincrática e retrospectiva, já que, de fato, a química esteve presente de modo direto no primeiro livro, “É Isto um Homem?”, publicado em 1947.

Nesse título, a experiência vivida no campo de extermínio, por vezes, foi narrada como relato de um “experimentum”, um laboratório no qual o comportamento humano pode ser observado em condições mais do que extremas, expurgados os efeitos dos hábitos ordinários e do processo civilizador.

Tal enquadramento possui a indisfarçável marca de um dos heróis intelectuais de Primo Levi, Galileu Galilei, para quem o “experimentum”, como arte de descoberta, não resulta de um contato primário e deseducado com as coisas e os elementos, mas sim de questões que dirigimos à natureza.

Nada mais apropriado, de fato, para um sujeito cujo livro tem como título uma pergunta. Mas, se há perguntas que precedem a experiência, isso equivale a dizer que há uma linguagem preestabelecida, a um só tempo continente e expressão de uma teoria do mundo. O “experimentum” resulta, portanto, do rebatimento de uma tradição cognitiva sobre a contingência das coisas. Para Primo Levi, tal seria o encaixe da química na economia de seu próprio processo cognitivo.

De modo mais pungente, Primo Levi disse dever à química o fato de ter sobrevivido a Auschwitz, embora sempre tenha atribuído tal contingência ao acaso. A “prova” está também relatada em seu primeiro livro, no registro precioso do “exame de química” ao qual se submeteu, diante do dr. Panwitz, para ser admitido como analista no laboratório da fábrica de borracha sintética instalada em Monowitz, parte integrante do campo de extermínio.

Tendo ali chegado em fevereiro de 1944, o acesso ao laboratório, de fato, o protegeu dos rigores de um segundo inverno, em fins daquele mesmo ano, que provavelmente lhe teria sido fatal.

Em um outro laboratório, seis anos antes, Primo Levi fizera uma descoberta filosófica essencial, a do caráter “inerentemente antifascista” da química, pela valorização da impureza das combinações de elementos, em aberto contraste com a obsessão fascista de pureza. É bem provável que esse antifascismo o tenha conduzido a uma concepção da química como reserva de resistência.

De qualquer modo, o laboratório químico, sob o fascismo, será o seu “falanstério”, a sua “sociedade virtuosa”, na qual se aprende a importância de “acertar e errar em conjunto”. Sendo assim, o laboratório do dr. Panwitz não passou de um contralaboratório.

O primeiro e mais usual ângulo de interpretação da obra de Primo Levi toma-o como autor inscrito no gênero particular da assim chamada “literatura de testemunho”.

Tal variante, segundo Elie Wiesel, também ex-deportado, teria caracterizado o conjunto dos relatos textuais de sobreviventes da Shoah, movidos pelo empenho e pela obrigação de prestar testemunho: “se os gregos inventaram a tragédia, os romanos a epístola e o renascimento o soneto, nossa geração inventou uma nova literatura, a do testemunho”.

Uma literatura cujo valor residiria tanto na capacidade de dar a ver a escala de sofrimento vivida por seus autores quanto o quadro de vitimização maior que a proporcionou.

Temo que Primo Levi se encaixe mal em tal modelo. O que o notabilizou, já no livro de estreia em 1947, foi o sobrepasso do testemunho: há algo ali que excede o relato e o efeito testemunhal. Há, sem dúvida, uma decisão explícita de testemunhar, presente no próprio ato da escritura.

No entanto, em meio à recepção original da obra como relato testemunhal de um “ex-deportado”, houve gente, como Italo Calvino, capaz de detectar de imediato a dimensão e a qualidade literárias do livro.

Melhor compreender a opinião de Calvino como um juízo de inclusão, mais do que um elogio a qualidades literárias de um jovem de 28 anos. Um juízo que vincula Primo Levi a uma notável tradição literária, cujas marcas são estruturantes em sua própria escrita, através de referências fundas a Dante Alighieri e Alessandro Manzoni.

São muitas as dimensões do testemunho e da vontade de transmissão a ele associada. Distingo quatro modalidades, sempre mobilizadas por Primo Levi de modo combinado.

1) Testemunhar para si mesmo
Ainda que a expressão do ato de testemunhar esteja contida no conteúdo do que é transmitido, tal ato pressupõe a decisão de sobreviver: “...precisamente porque o campo é uma grande máquina para nos reduzir à condição de bestas, não devemos nos tornar bestas; mesmo neste lugar é possível sobreviver, para contar a história, para prestar testemunho; e para sobreviver devemos nos empenhar em salvar ao menos o esqueleto, a estrutura básica, a forma da civilização”.

O testemunho, desta forma, associa-se tanto ao empenho em permanecer vivo quanto ao de manter em si a integridade do sujeito, aqui posto como unidade existencial que abriga as marcas do processo civilizador. O empenho em testemunhar, para além de seus efeitos externos, aparece como condição de consistência interna do sujeito que testemunha. Esse parece ser o sentido forte da ideia de “salvar [...] a forma da civilização”, como ato de autoconsistência.

2) Testemunhar algo
Trata-se aqui, antes de tudo, da capacidade não ordinária de observar e reter na memória um conjunto de eventos vividos no mundo concentracionário. Mundo que se apresentava como incognoscível, avesso à narração sistematizada e invertido: “...a tal propósito quero recordar que para nós sobreviventes, o Läger [campo], em seu aspecto mais ofensivo e imprevisível, era exatamente isto: um mundo ao revés, no qual ‘fair is foul and foul is fair’, os professores trabalham com as pás, os assassinos são comandantes e mata-se nos hospitais”, afirmou Primo Levi.

Há, no entanto, em jogo muito mais do que isso. A intenção declarada do livro é a de “fornecer documentos para um estudo sereno de alguns aspectos da alma humana”. Auschwitz aparece como um gigantesco laboratório, no qual a condição humana dá-se a ver em situações de supressão radical das regras ordinárias do processo civilizador.

Ali observam-se os efeitos da destruição dos humanos e da constituição do Homo Läger, expressão criada por Paul Steinberg, sobrevivente e contemporâneo de Primo Levi em Auschwitz. O Homo Läger, variante arruinada do Homo Sapiens, é o Homem do Campo, de quem foram suprimidos os elementos humanos básicos: a linguagem e a capacidade de ter expectativas.

Cenário de homens destruídos e de sobreviventes habitantes de uma “zona cinzenta”, tratada magistralmente por Primo Levi em seu último livro, “Os Afogados e os Sobreviventes”, de 1986. Uma área habitada por inumeráveis ações humanas que escapam aos marcadores binários da moralidade absoluta.

O propósito de realizar um “estudo sereno de alguns aspectos da alma humana” dá ao livro de estreia de Primo Levi foros de universalidade. A pergunta-título só faz sentido se conectada a um empenho intelectual de natureza antropológica, em claro movimento de sobrepasso do testemunho.

3) Testemunhar por alguém
O compromisso de falar pelos que morreram foi expresso por Primo Levi em passagem pungente de seu segundo livro, “A Trégua” (1963), no qual narra sua viagem de regresso de Auschwitz a Turim, em 1945.

Refiro-me à história de Hurbinek, um menino de três anos, “um filho da morte, um filho de Auschwitz [...] o que não tinha nome, cujo minúsculo antebraço fora marcado mesmo assim pela tatuagem de Auschwitz”. Hurbinek morreu nos primeiros dias de março de 1945, após a libertação do campo. Conclui Primo Levi: “Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”.

4) Testemunhar para a escuta de outra pessoa
Um dos sonhos regulares de Primo Levi, em Auschwitz, representava o regresso ao ambiente familiar em Turim e o insucesso de fazer com que os seus o escutassem. No semipesadelo, o testemunho fenecia diante da falha familiar da escuta. Os nomes que compõem nossa linguagem ordinária supõem uma correspondência com objetos de idêntica extração.

Como fazer com que passem a designar o inacreditável ou escalas de infortúnio que excedem as atribuições comuns de sentido? Como garantir a transmissão, como fixá-la no sujeito da escuta, como constituir uma experiência de escuta?

A saída encontrada por Primo Levi foi a de inventar uma linguagem e uma forma literária próprias, e delas fazer a “forma natural” de falar a respeito do campo de extermínio. Trata-se da forma Levi, um conjunto de efeitos literários cuja criação põe em relevo uma das facetas da passagem cubista adotada como epígrafe deste ensaio, a de escritor.

A forma literária é um modo de construção de mundos: “Nos meus livros [...] percebo uma grande necessidade de reordenar, de pôr em ordem um mundo caótico [...] Escrever é um modo de ordenar. E é o melhor que conheço, ainda que não conheça muitos”, afirmou.

Escrever implica, ainda, simplificar por meio de esquemas, tal como Primo Levi o reconhecerá em seu último livro. Na obra de estreia, dada a complexidade dos atos testemunhados, fez uso de esquemas móveis, ou operadores literários orientados para desafiar as reservas dos leitores e, ao mesmo tempo, com eles estabelecer nexos de empatia.

Nos termos de um magnífico ensaio de Hans Blumenberg, “Naufrágio sem Espectador”, o “espectador incólume” é alguém capaz de sentir empatia e comiseração por quem sofre, ao mesmo tempo em que usufrui de uma “sensação agridoce de maligno agrado”, por não estar implicado no infortúnio em questão.

O próprio ato de empatia pressupõe a incolumidade. Primo Levi vale-se de dois operadores literários perturbadores da incolumidade, cuja aplicação ultrapassa os limites do testemunho: o uso de fragmentos e a interpelação do leitor.

Primeiro, os fragmentos. Na apresentação do primeiro livro, Levi reconheceu seu caráter fragmentário, devido a razões de “urgência’, que impediram “sucessão lógica” entre os capítulos. De fato, não há nexo necessário entre eles. São autossuficientes e em conjunto compõem um mosaico.

A arte dos fragmentos à qual me refiro possui parentesco com a “estética de fragmentos” presente na poesia de Giuseppe Ungaretti, a quem Haroldo de Campos dedicou um importante ensaio, em seu livro “A Arte no Horizonte do Provável”, de 1969, sob o título de “Ungaretti e a estética do fragmento”.

Um dos exemplos colhidos por Haroldo de Campos encontra-se no seguinte poema de Ungaretti, de 1919: “Nada resta de imóvel/ senão renques de luzes/ no fundo do abismo/ e assobios/ que retornam/ sem morada/ sem família/ sem amores/ sem amigos/ sem lembranças/ sem esperança”.

A analogia formal com o poema de Primo Levi, “Shemà”, epígrafe de seu livro de estreia, pode ser detectada nas seguintes estrofes: “Considera se isto é uma mulher/ Sem cabelos e sem nome/ Sem mais força para recordar/ Vazios os olhos e frio o ventre/ Como uma rã no inverno”.

Há, contudo, diferenças de substância. Para Ungaretti, o fragmento é a “única forma possível de poesia no universo fraturado em que vivemos”, afetado pelas “consequências do progresso tecnológico”, entre elas uma “crise na linguagem sem precedente”. Para Levi, não se tratava de crise da linguagem, mas de desabamento do sentido do mundo, em escala tal que qualquer descrição sistemática a respeito terá diante de si auscultadores incrédulos.

Face a tal quadro, fragmentos podem mostrar episódios de dissolução dos humanos de modo mais vívido do que abstrações conceituais com pretensão à explicação sinóptica.

É bem o caso do episódio das mães, a cuidar dos filhos, no campo de internamento de Fossoli, às vésperas do transporte final para Auschwitz no qual Primo Levi foi incluído. Ele observa o que faziam as mães a preparar “com esmero as provisões para a viagem”, a dar banho em suas crianças, a arrumar suas malas e a lavar suas roupas.

O fecho textual contém uma das imagens mais fortes de todo o livro: “ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar”. O fragmento, de altíssimo poder de retenção, capta o detalhe, o absurdo e o destino ali envolvidos. E prossegue: “Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem”.

A própria história de Hurbinek é um fragmento da Shoah, com enorme efeito metonímico: por sua força sintética, mostra a essência do princípio da morte vigente no campo. A operação não se completa como um efeito de conhecimento, mas como estabelecimento de um nexo de ordem mais moral do que cognitiva, que exige do leitor adesão, solidariedade e uma moralidade compartilhada.

Além da fragmentação, temos a interpelação (direta e hipotética). No mesmo episódio das mães e de seus filhos, na iminência do extermínio, Primo Levi descreve o cuidado com a alimentação das crianças. Em antecipação a provável sensação de absurdo por parte de quem o lê, pergunta: “Não fariam também o mesmo? Se amanhã esperassem para ser mortos com seus filhos, não lhe dariam hoje de comer?”.

O ato de interpelação corresponde à eliminação da quarta parede no campo da dramaturgia, e permite que o autor “fale” diretamente com o leitor, fora da sombra da autoridade textual implícita e oculta, assim como os atores que integram as plateias em seus espaços cênicos.

No poema de abertura de “É Isto um Homem?”, a interpelação passa ao amaldiçoamento. A falha em reconhecer a humanidade de homens e mulheres submetidos ao inferno de Auschwitz faz jus ao seguinte voto: “...que vossa casa se desfaça, / A doença vos impeça, / Vossa prole desvie o rosto de vós”.
desmorone a sua casa/ Que a doença o entreve/ que os seus filhos lhe virem o rosto”.

A interpelação/maldição é porta de entrada do leitor em Auschwitz, pelas mãos de Primo Levi. Assim como Dante foi conduzido ao Inferno por Virgílio, Primo Levi transitou no Inferno-Auschwitz acompanhado de Dante. Parece não ser recomendável que desçamos aos infernos desacompanhados. ​

A interpelação hipotética dá-se por meio do convite a um experimento mental. O uso do recurso em Primo Levi foi destacado por Massimo Bucciantini e segue a seguinte fórmula: “Imagine-se agora um homem ao qual, juntamente com as pessoas amadas, tiram a casa, os hábitos, a roupa, enfim, tudo literalmente quanto possui: será um homem vazio, reduzido ao sofrimento e à carência, esquecido da dignidade e bom senso [...] Compreender-se-á, então, o duplo significado da expressão ‘campo de extermínio’, e será claro o que entendemos exprimir com esta frase: chegar ao fundo”.

Trata-se, neste caso, de mobilizar os recursos imaginativos do leitor e conduzi-lo a uma situação hipotética, uma espécie de antessala de um juízo categórico. A configuração do teatro mental induzido pelo convite à imaginação prepara o juízo para abrigar a obrigação moral de pôr-se naquele lugar e extrair consequências incontornáveis.

Com efeito, em tempos de regurgitação filo-fascista, a leitura de Primo Levi é uma obrigação moral, trânsito para o imperativo categórico do nosso tempo tão escaleno.


Renato Lessa é pesquisador associado do Centro Roland Mousnier, da Universidade de Paris 4-Sorbonne, e do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de LisboaR.

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