Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Livros

Em Recife, os vivos estão cercados pelo olhar atento dos mortos

Livro mais célebre do escritor Carneiro Vilela, de 1886, revela cidade marcada por crimes e mistérios extraordinários

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No prefácio de "Assombrações do Recife Velho" (1955), Gilberto Freyre comenta que a história da capital pernambucana é marcada pelo sobrenatural. Segundo o sociólogo, além de célebre por algumas das revoluções que sacudiram o país, o Recife é também palco de boatos, crimes e mistérios extraordinários.

Quem é de Recife com certeza já ouviu falar no Papa-figo, na Perna Cabeluda e na multidão de fantasmas anônimos e ilustres que habitam o Palácio do Campo das Princesas e o Teatro de Santa Isabel.

Eu mesma cresci ouvindo essas e outras histórias da boca de amigos e da gente de casa, a exemplo da minha tia Clara, que dizia ter visto um dos fantasmas do teatro. Talvez, em razão de tais testemunhos, eu tenha chegado à conclusão, ainda menina, de que, para ser considerada legitimamente pernambucana, precisaria aprender a lidar de uma vez por todas com eventos surpreendentes e fantásticos.

Afinal, estamos falando de uma terra em que, tanto para o bem quanto para o mal, os vivos ainda aparentam conduzir os seus negócios sob o olhar atento dos mortos, como no caso de um dos nossos jovens políticos que, durante a sua campanha para deputado federal, apareceu em adesivos e santinhos ladeado pelas célebres figuras do pai e do avô, ambos já falecidos.

Material de campanha mostra João Campos e o pai e o avô ao seu lado
Material de campanha de João Campos em eleição para a Câmara dos Deputados - Reprodução

Pois bem, entre os mais diversos causos macabros e extraordinários que escutei durante a minha infância no Recife, um que muito me chamou a atenção foi a história da emparedada da rua Nova, a qual meu pai gravou de forma caseira em uma fita cassete, utilizando-se de um tubo de papelão para criar a impressão de que tudo estava sendo narrado por uma voz do além-túmulo.

A história da jovem filha de um rico comerciante que engravidou do amante e foi emparedada pelo pai excessivamente austero em um sobrado do centro da cidade tanto me marcou —ora, imagine viver em uma época em que esse tipo de violência contra a mulher é admitida!— que, ainda no começo da minha adolescência, costumava passar pela rua Nova observando as suas construções mais antigas em uma tentativa de estabelecer qual era o prédio onde o episódio teria acontecido.

Talvez por conhecer o passado violento da capital pernambucana, passei boa parte da vida acreditando que a história da emparedada pudesse ser real e, por isso mesmo, nunca corri atrás de alguma informação que desmentisse essa minha crença.

Somente em maio deste ano, quando estive no Recife para cuidar da saúde e visitar a minha mãe, foi que o meu amigo José Roberto, estudioso da nossa literatura, me chamou a atenção para o fato de que, na verdade, a emparedada é uma criação do jornalista e escritor Carneiro Vilela (1846-1913), um dos fundadores da Academia Pernambucana de Letras.

Pouco conhecido do leitor contemporâneo, Carneiro Vilela foi um escritor prolífico de artigos e crônicas, poesias, comédias e romances que participou ativamente da vida cultural pernambucana entre o final do século 19 e a primeira década do século 20. Sem jamais se ausentar de qualquer polêmica, ele foi um crítico ferrenho da religião, dos vícios da vida brasileira e da natureza humana, temas que também informam a sua mais célebre obra de ficção: "A Emparedada da Rua Nova" (1886).

Para o professor Anco Márcio Tenório Vieira, autor do ensaio de apresentação da mais recente edição do romance (Cepe Editora), o sucesso de "A Emparedada" deve-se, entre outras coisas, ao equilíbrio conquistado por Carneiro Vilela entre os elementos estruturais e temáticos do livro.

De fato, todos os capítulos do romance são dotados de muita dinâmica, sem que isso de modo algum tire do autor a possibilidade de oferecer aos seus leitores um rico e minucioso registro do cotidiano social, político e religioso de um Recife que, embora já não exista mais, ainda permanece bastante vivo no imaginário dos pernambucanos, como as assombrações de Gilberto Freyre, que nunca cessam de nos forçar a revisitar o passado da cidade como uma mulher vaidosa que examina o próprio rosto diante do espelho, avaliando se a maquiagem é suficiente para dissimular imperfeições da idade.

Deixo aqui, portanto, a recomendação para que todos leiam o romance de Carneiro Vilela. Li e gostei demais de rever a gente da minha cidade e de percorrer as suas ruas na companhia das personagens.

Além disso, mesmo para quem ainda não conhece o Recife, "A Emparedada" oferece uma excelente oportunidade de reflexão sobre os mistérios que fazem parte das nossas histórias. Afinal, como bem afirmou Gilberto Freyre: "Pobre da cidade ou do homem cuja história seja só história natural".

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