Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Saber final de um livro não deveria diminuir interesse por sua leitura

Spoilers não são indiscrições da crítica, mas forma de criar diálogo sobre obras que amamos

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No que deveríamos estar realmente interessados durante a leitura de uma obra literária cujos principais fatos são de conhecimento geral, a exemplo das histórias da Bíblia e das tragédias gregas?

Será que, ao sermos informados por outras fontes de que José foi traído pelos irmãos e de que Édipo matou o pai e se casou com a própria mãe, estaríamos de alguma maneira estragando a nossa experiência de leitura?

A atriz Keira Knightley em cena do filme 'Anna Kariênina' (2012), em que interpreta a personagem-título - Divulgação

Para que o meu questionamento fique ainda mais claro e ninguém venha me dizer que as pessoas geralmente não recorrem à Bíblia, nem a Sófocles, com o intuito de serem surpreendidas, permitam-me complementar o meu raciocínio.

O romance "Anna Kariênina", de Liev Tolstói, foi originalmente publicado em livro em 1878. Desde então, já virou ópera e balé, ganhou adaptações cinematográficas e televisivas, bem como foi e continua sendo objeto de diversos estudos e traduções.

Ainda há pouco fiquei sabendo em uma resenha publicada no New York Times que, somente em língua inglesa, "Anna Kariênina" possuiria ao menos nove versões. Pensando nisso, se por acaso eu resolver comentar aqui ou em qualquer outro texto que a protagonista do romance se mata ao se jogar contra um trem em movimento, o leitor deveria frustrar-se e devolver o livro à estante?

Acredito que não, e mesmo que "Anna Kariênina" fosse uma obra recém-lançada de um escritor contemporâneo, eu continuaria achando que o simples fato de sabermos o que se passa no livro não deveria diminuir nosso interesse por sua leitura.

Ora, um leitor experiente nunca está simplesmente interessado em saber que Anna Kariênina comete suicídio; ele também sente a necessidade de refletir sobre a função que a morte da personagem desempenha no romance como um todo.

Além disso, conheço leitores, como o meu amigo José Roberto, que questionam o suicídio da personagem em virtude de algo que ela comenta quando está prestes a ser atingida pelo trem. Ontem mesmo conversamos longamente sobre isso, mas não conseguimos entrar em um acordo. Continuamos oferecendo interpretações ligeiramente distintas para uma mesma fala da personagem.

Por fim, se o leitor estiver profundamente envolvido com o texto do romance de Tolstói, vai acabar se perguntando o quão desafiador não teria sido para o autor conseguir encontrar as palavras certas para emprestar tanta força às cenas que descrevem os últimos momentos da protagonista em apenas uma curta sequência de parágrafos.

Quando um crítico literário escreve seriamente sobre uma obra de ficção, ele procura lidar com algumas dessas inquietações do leitor e, por isso mesmo, quase sempre acaba recorrendo a alguns eventos do livro para esmiuçar como e por que um tema específico foi desenvolvido naquele determinado contexto.

O que pouca gente percebe é que, ao revisitar uma obra e refletir sobre os seus enigmas, o crítico não está reproduzindo o que já foi dito pelo autor. A crítica literária também é uma atividade criativa e, na medida em que o seu agente disserta a respeito do que acontece em um livro, ele também está transformando aquele material em algo novo.

Por exemplo, em seu ensaio sobre o inquietante, Freud escreve um comentário bastante detalhado sobre o conto "O Homem da Areia", do escritor alemão E.T.A. Hoffmann, na tentativa de ilustrar como algo familiar pode se tornar estranho e como os duplos, as repetições e as coincidências caracterizam fenômenos potencialmente angustiantes.

Alguém poderia dizer que o texto de Freud estaria repleto do que muitos costumam chamar de spoilers e que, após a sua leitura, ninguém mais sentiria vontade de ler Hoffmann. No entanto, se Freud não tivesse sido tão explícito em sua análise do conto, talvez as suas ideias sobre o inquietante não fossem desenvolvidas com tanta clareza.

Li o ensaio de Freud muito antes de ter acesso ao conto de E.T.A. Hoffmann e nem por isso achei que a sua interpretação tornava desnecessário o contato com o texto original. Afinal, nada, nem mesmo a melhor e mais completa análise, consegue ter o mesmo impacto de uma história bem contada.

Cada leitura é única e nem todos chegamos à mesma conclusão sobre o que acontece em um livro.

É por isso que os leitores menos experientes não devem se deixar frustrar por aquilo que talvez considerem ser uma indiscrição da crítica literária. Os críticos somente propõem que, em algum momento, todos se tornem capazes de participar dessa mesma longa e franca conversa a respeito dos livros que amamos.

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