Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Livros

Tesouros secretos de uma biblioteca

Anotações, assinaturas e dedicatórias em livros muitas vezes são mais preciosas que o conteúdo impresso neles

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Moro com meu companheiro em uma pequena casa abarrotada de livros. Temos estantes nos quartos de dormir, no escritório, nas salas de jantar e de televisão, no corredor e no vão da escada. Nunca colocamos nada na cozinha por medo de incêndio, nem nos banheiros por conta da umidade.

No entanto, no começo deste ano, quando finalmente confrontamos as pilhas de livros, revistas e artigos acadêmicos que começavam a se formar próximas do sofá e da cama, decidimos que precisávamos repensar o tamanho das nossas bibliotecas.

Sim, bibliotecas, no plural mesmo, porque embora tenhamos uma formação parecida, Mark também estudou filosofia, nos dedicamos a discussões e atividades profissionais distintas e nem sempre compartilhamos os mesmos gostos de leitura.

Livros no escritório da colunista Juliana de Albuquerque
Livros no escritório da colunista Juliana de Albuquerque - Acervo pessoal

Eu, por exemplo, embora goste bastante, nunca morri de amores por Thomas Mann. Já Mark não consegue entender muito bem o que eu enxergo de tão interessante nos romances de Saul Bellow.

Repensar conjuntamente bibliotecas tão diversas, sabendo que precisamos, entre outras coisas, ajudar o outro a decidir algo com relação aos volumes realmente essenciais e aqueles que podem ser descartados, não está sendo fácil, nem muito menos agradável, mesmo sabendo que ao final do nosso trabalho teremos ainda mais espaço para usufruir confortavelmente das nossas leituras prediletas.

Quando eu vim para a Irlanda, trouxe comigo alguns dos livros que acumulei durante os primeiros anos da vida adulta. Volumes que adquiri nos sebos do centro de Recife, em viagens a Porto Alegre, Paris, Lille e Oslo, bem como nas bibliotecas das universidades que frequentei em Israel e na Alemanha.

Isso sem contar todos os livros que ganhei de antigos professores, amigos e familiares, como minha avó Lourdinha, cujas dedicatórias nunca me deixaram esmorecer mesmo quando, nos primeiros anos fora do Brasil, tudo parecia difícil, quase impossível.

Alguns desses livros me acompanham há quase 20 anos e manifestam a evolução dos meus interesses de leitura e pesquisa. Gosto de olhar para eles como quem brinca com o mapa da própria cidade, julgando-se quase que totalmente incapaz de se perder em um emaranhado de referências que só faz realmente sentido para quem viveu intensamente cada esquina, cruzamento, beco e rua descalça do lugar de onde veio.

Outros livros, como o dicionário de filosofia do meu pai e o velho manual de conjugação de verbos franceses da minha avó Olga, convivem comigo desde a infância e, ainda que eu não os consulte, tê-los em casa, para mim, significa tê-los sempre por perto.

Hoje, ao abrir o manual de conjugação de verbos franceses, dei de cara com uma assinatura do meu pai ainda bastante jovem e com um recado da minha tia Mercês: "Comprar um dicionário francês de sinônimos". Encontrei também uma lista de compras e o endereço de trabalho de um conhecido da minha avó, M. Gérard Leloup, em Créteil, na França.

Já ao abrir o dicionário de filosofia, encontrei a grade das disciplinas que cursei no segundo período da Faculdade de Direito, recuperei algumas anotações da época de escola, e me deparei com uma carta da minha avó Lourdinha escrita durante meu primeiro ano fora do Brasil:

"No Dia das Mães, todos almoçaram aqui em casa e só faltou você. Deu-me muitas saudades, porém no mesmo momento me alegrei por saber que você está muito feliz. Faço votos para que realize todos os seus sonhos. Para isto é preciso muita força de vontade e você tem".

Coincidentemente, somente agora, em 2023, pude novamente comemorar um Dia das Mães com a minha família. Treze anos se passaram desde aquela cartinha, vovó faleceu em 2012, a nossa casa foi alugada e os grandes almoços de domingo foram substituídos pelo aconchego do cafezinho com bolo na cozinha do apartamento de Tia Boy.

Muita coisa mudou e continuará mudando, mas vovó sempre estará presente onde quer que eu esteja, lutando junto aos livros para realizar os meus sonhos.

As estantes do meu companheiro também estão cheias de volumes assim, repletos de anotações, bilhetes, assinaturas e dedicatórias, a revelar mistérios que, somente agora, com a passagem do tempo, se tornaram ainda mais preciosos do que o conteúdo impresso nas páginas em que foram inscritos.

Não faço ideia se ao final dessa arrumação a casa ficará mais espaçosa. Tenho quase certeza de que não conseguiremos nos desfazer da maioria dos nossos livros, pois a verdade é que esta casa não seria efetivamente nossa sem os livros que carregam as nossas histórias.

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