Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Simone de Beauvoir ensina a não nos desculparmos por sermos mulheres

Fome de liberdade da escritora e filósofa francesa pode nos contagiar neste começo de ano

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Um pouco antes do Natal, recebi a mensagem de uma colega propondo que organizássemos um pequeno grupo para discutirmos um dos meus livros prediletos: "Os Mandarins", romance de Simone de Beauvoir que completa 70 anos de publicação em 2024 e pelo qual a filósofa e escritora recebeu o mais importante prêmio literário francês, o Goncourt.

Nesse livro, Beauvoir retrata alguns dos vários dilemas que definiram a vida dos intelectuais franceses ao final da Segunda Guerra Mundial, ao exemplo das discussões sobre como as esquerdas deveriam passar a se organizar no pós-guerra, bem como sobre o papel do escritor e a relação entre política e literatura.

Beauvoir em casa, em Paris
Simone Beauvoir em sua casa, em Paris - Jacques Pavlovsky/Sygma Coleção/Getty Images

Aceitei o convite sem pestanejar, motivada pela sensação de que a releitura e a discussão do livro talvez pudessem me ajudar na finalização de um artigo que apresentarei em junho em uma conferência dedicada à filósofa.

Imaginei que a minha nova leitura de "Os Mandarins" seria como quase todas as outras que costumo proceder quando estou trabalhando. Isto é, imaginei que seria capaz de me ajudar a recuperar informações e a descobrir detalhes que, em um momento anterior, não haviam despertado o meu interesse. Não passou pela minha cabeça que esse processo pudesse desencadear em mim qualquer reflexão mais íntima sobre a minha relação com o texto.

No entanto, existem livros que, além de ampliar o nosso conhecimento, também cumprem um importante papel no desenvolvimento das nossas personalidades, nos dando a impressão de que, ao revisitá-los, estamos indo ao encontro de algo que nunca deixará de ser relevante para a compreensão da imagem que fazemos de nós mesmos.

Em 2007, quando li "Os Mandarins" pela primeira vez, em uma edição antiga que recebi pelos Correios de um amigo de São Paulo, eu ainda morava em Recife, cursava a graduação em direito e sonhava um dia me tornar filósofa. Eu só não fazia ideia de como isso aconteceria, apenas reconhecia que precisaria concluir o meu curso, começar um mestrado em filosofia, defender um doutorado e, finalmente, passar a lecionar em uma universidade.

Na época, embora eu tivesse uma boa convivência com os meus professores, a única mulher mais velha que eu conhecia e que trabalhava em uma universidade era a minha tia Clara, mas ela era professora de medicina e isso, na minha cabeça de então, não guardava relação com os meus objetivos. Assim, acabei elegendo Beauvoir como modelo.

Não me arrependo e tenho quase certeza de que, no meu lugar, a minha tia provavelmente teria feito o mesmo. Beauvoir me ensinou muita coisa, inclusive a não me desculpar por ser mulher e por querer seguir o meu caminho com autonomia, segundo as minhas próprias convicções. Foi Beauvoir também que, pela primeira vez, chamou a minha atenção para a relação entre filosofia e literatura, tema que até hoje informa boa parte do meu trabalho.

Ainda assim, muita coisa mudou nesses 17 anos. De lá para cá, vivenciei rupturas e acumulei perdas afetivas que me fizeram questionar se eu estaria realmente fazendo a coisa certa. Fui criticada por quem achava que eu deveria me adequar às suas expectativas do que deveria ser uma mulher, mas aprendi que crítica não mata nem tira pedaço.

Tomei, portanto, coragem e resolvi viajar. Vivi coisas novas, me interessei pela obra de outros autores, alguns dos meus projetos fracassaram, outros foram razoavelmente bem sucedidos. Nem sempre as coisas saíram conforme o planejado, mas sobrevivi. O que realmente importa é que, em momento algum, eu me vi arrependida de exercer o protagonismo da minha própria vida.

Ainda relendo "Os Mandarins" durante o final de semana, cheguei a um ponto do livro que me chamou a atenção. Depois de muita hesitação, a protagonista, Anne Dubreuilh, finalmente decide aceitar o convite para participar de uma conferência e passar uma temporada de trabalho nos Estados Unidos.

Aos 39, casada com um homem 20 anos mais velho que ela e mãe de uma adolescente, Anne questiona a experiência da guerra, a própria idade e o seu lugar na vida das pessoas. Será mesmo que todos ficarão bem na sua ausência? Aos poucos, ela então percebe que não faz sentido algum pensar dessa maneira, tentando se agarrar aos outros para justificar o seu receio de exercer a liberdade: "Sobreviver, afinal de contas, é recomeçar sem cessar a viver".

Acho que era exatamente isso que eu precisava escutar neste começo de ano. Assim, deixo aqui a sugestão para que os leitores também redescubram "Os Mandarins" e, quem sabe, se deixem contagiar pela fome de liberdade de Simone de Beauvoir.

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