Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Juliana de Albuquerque

Amós Oz apontou papel do questionamento de verdades no judaísmo

Experiência de mundo e bagagem cultural se somam a perambulações da razão no fazer filosófico

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Outro dia, no Instagram, me perguntaram como eu faço para conciliar o meu trabalho enquanto filósofa com a prática do judaísmo.

Respondi que, da maneira como me foi repassado, o judaísmo compreende elementos que também são fundamentais tanto para o estudo da filosofia e da literatura quanto para a pesquisa acadêmica, ao exemplo da importância que a tradição judaica atribui à educação, ao debate e, principalmente, ao questionamento de verdades que, muitas vezes, gostaríamos de tomar por certas, mas quase sempre necessitam de verificação.

O escritor israelense Amós Oz participa do Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, em 2017 - Adriano Vizoni - 27.jun.17/Folhapress

"Os Judeus e as Palavras" (2012), ensaio do escritor israelense Amós Oz (1939-2018) em coautoria com a sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, é uma excelente porta de entrada para quem deseja refletir um pouco melhor sobre essa questão. Pois, logo nas primeiras páginas, os autores recorrem a uma passagem do Talmude para ilustrar a relação dos judeus com os livros, ressaltando como aqueles três elementos que mencionei logo acima, ou seja, o estudo, o debate e o questionamento, estariam intimamente relacionados à prática judaica.

Pai e filha se referem à célebre narrativa do Forno de Achnai, que apesar de bastante complexa, pode ser resumida da seguinte maneira: um grupo de rabinos discute se um determinado tipo de fornalha seria ou não adequado para uso ritual. Na ocasião, o rabino Eliezer discorda dos demais e faz de tudo para justificar o seu posicionamento, porém não os convence.

A disputa entre os rabinos se intensifica e o próprio Deus resolve intervir em favor do dissidente, questionando: "Por que discutis com Rabi Eliezer, vendo que em todos os assuntos a Halachá [a Lei] concorda com ele!". Ao que Rabi Yehoshua retruca, citando uma passagem do Deuteronômio: "Não está nos Céus!".

E o outro, Rabi Yirmiyah, reforça: "A Torá já foi dada no Monte Sinai; nós não prestamos atenção a uma Voz Celestial porque Vós há muito escrevestes na Torá no Monte Sinai, [citando Êxodo]: ‘Segundo a maioria deve-se inclinar'". Algum tempo depois, Rabi Natan se encontra com o profeta Elias e pergunta o que Deus achou de toda aquela polêmica. O profeta então comenta: "Ele sorriu e disse: 'Meus filhos derrotaram a Mim, meus filhos me derrotaram'".

Para Amós Oz e sua filha essa passagem do Talmude nos ensina que, em uma discussão acadêmica, "o julgamento de uma maioria [de sábios] bate o Todo Poderoso". Pois, ainda segundo os autores: "O Forno de Achnai sinaliza a transição da profecia para a exegese [...]. Foi-se o profeta solitário com uma ligação direta com o Todo Poderoso. Entra o intérprete, em constante conversa com os seus colegas, aplicando a inteligência humana aos textos sagrados, agora sujeitos a múltiplas leituras".

Assim, nunca havia me passado pela cabeça que talvez pudesse existir uma incompatibilidade entre filosofia e judaísmo. Pois, além de encarar a prática judaica como uma atividade de estudo, debate e questionamento, sempre enxerguei o que eu faço enquanto filósofa como uma espécie de prolongamento da minha experiência de vida.

Desse modo, se costumo escrever sobre a relação entre literatura e filosofia porque esse é um tema que me interessa desde a época de ensino médio, quando me encantei pela obra de autores como Goethe e Rilke, também não vejo problema em admitir que faço filosofia a partir do diálogo com uma determinada tradição e, que, no meu caso, essa tradição é atravessada pelas referências que informam a complexa trama da minha identidade.

Há por aí quem se iluda e acredite que, para alguém se dedicar ao estudo da filosofia, essa pessoa deva, de alguma forma, se assemelhar à imagem muitas vezes distorcida do que ele considere ser um filósofo de verdade, como se nessa categoria coubesse apenas um determinado tipo de indivíduo, nascido em um certo lugar e pertencente a uma cultura específica.

No entanto, supor algo assim é ignorar como a história do pensamento também é múltipla e pode oferecer aos seus estudantes diferentes pontos de acesso por meio dos dos quais, talvez, passamos a nos sentir um pouco mais habilitados a questionar o que significa fazer filosofia a partir das nossas próprias circunstâncias. Isto é, levando em consideração o que a nossa experiência de mundo e bagagem cultural têm a acrescentar às intermináveis perambulações da razão.

Foi isso o que aprendi no último mês ao participar de um evento acadêmico promovido pela Universidade de Hamburgo sobre a importância do ceticismo na filosofia, no judaísmo e na cultura em geral. Aprendizado esse que certamente levarei comigo para o resto da vida.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.