Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
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Ler nos permite entender que somos semelhantes em nossas diferenças

Para Simone de Beauvoir, proporcionar diálogo entre leitores é uma das principais tarefas da literatura

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Participo na próxima semana de um evento em homenagem aos 70 anos de publicação de "Os Mandarins", romance em que Simone de Beauvoir aborda algumas das questões que intrigavam os intelectuais franceses durante o pós-guerra, ao exemplo do papel do escritor no debate público e, principalmente, da função da literatura em nossas vidas.

No trabalho que apresentarei durante a conferência, busco interpretar essas questões a partir da leitura de dois textos produzidos por Beauvoir durante a década de 1960. O primeiro tem por objetivo defender a ideia de que a escrita literária —sobretudo no romance e na autobiografia, gêneros nos quais Beauvoir tornou-se célebre— seria capaz de instaurar um espaço privilegiado de exercício da intersubjetividade.

Beauvoir em casa, em Paris
Simone Beauvoir em sua casa, em Paris - Jacques Pavlovsky/Sygma Coleção/Getty Images

Com isso Beauvoir quer dizer que uma das principais tarefas da literatura seria a de proporcionar o diálogo, não só entre o leitor e o texto, mas, especialmente, entre os próprios leitores.

Em uma tentativa de ilustrar essa reflexão, Beauvoir recorre a Proust, de quem, inicialmente, ela teria tomado a ideia. Beauvoir comenta que, ao compartilharem do universo de Proust, os seus leitores também estariam compartilhando algo sobre si, dando-lhes a impressão de que, com isso, também estariam aprendendo algo uns sobre os outros.

Acho que todos nós já passamos por uma experiência semelhante. Hannah Arendt, por exemplo, escreve sobre ela quando trata da relação entre a escritora e célebre anfitriã de salões literários Rahel Varnhagen (1771-1833) e a obra de Goethe. Segundo Arendt, a leitura de "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister" teria dado a Varnhagen uma linguagem a partir da qual ela pôde passar a se comunicar com os seus contemporâneos na tentativa de superar o isolamento em fato de ser uma judia na Alemanha em um período anterior à emancipação.

Para Beauvoir, a partir de um diálogo sobre a mesma leitura, passamos a compartilhar um universo através do qual buscamos articular as nossas experiências de modo a nos fazermos compreender pelos demais. Algo que, segundo a autora, confirmaria o caráter intersubjetivo da escrita literária, pois tanto a leitura quanto as discussões inspiradas em livros permitem-nos compreender que, apesar de sermos radicalmente únicos, também somos, ironicamente, semelhantes em nossas diferenças.

Já no segundo texto que irei abordar em minha apresentação, Beauvoir reflete sobre a própria experiência de escritora e volta a ressaltar a função comunicativa da literatura. Dessa vez, no entanto, ela também aborda, entre outros temas, a diferença entre a escrita do romance e a do ensaio.

Para Beauvoir, o romance, diferentemente de um texto ensaístico documental —ao exemplo de um livro de história sobre a Segunda Guerra Mundial—, não tem por objetivo transmitir informações ou comunicar um conhecimento de modo direto. Segundo a autora, o que uma obra como "Os Mandarins" oferece ao leitor é uma experiência de mundo através da qual o conhecimento do autor é transmitido de maneira indireta, permitindo-se demorar em contradições e ambiguidades.

Beauvoir relata que escreve ensaios quando tem total convicção sobre o que quer dizer, mas prefere os romances quando algumas das suas ideias ainda não estão suficientemente claras a ponto de poderem ser expressas de modo inequívoco.

Por conta disso, Beauvoir comenta que, durante o processo de escrita de "Os Mandarins" ela teria se utilizado dos personagens Anne Dubreuilh e Henri Perron para comunicar posicionamentos que, expressos lado a lado em um ensaio, soariam contraditórios.

Em resumo, Beauvoir esclarece: "Se estou escrevendo um romance, posso muito bem abordar [...] dois temas ao mesmo tempo, como se abordam vários temas ao mesmo tempo em uma sinfonia ou uma sonata, em contraponto, misturando-os e fazendo-os coexistir e se apoiar mutuamente".

Discordo parcialmente de Beauvoir sobre a maneira como ela trata o ensaio, pois acredito que, do mesmo modo que um romance comunica uma experiência de mundo, um ensaio não precisa transmitir determinado conhecimento de modo direito, podendo, sim, comunicar uma experiência de pensamento, tendo como exemplo o que Arendt escreve em "Homens em Tempos Sombrios" sobre G.E. Lessing (1729-1781): "Os ‘fermenta cognitionis’ que Lessing disseminou pelo mundo não pretendiam comunicar conclusões, mas estimular outras pessoas ao pensamento independente, e isso sem nenhum outro propósito senão o de suscitar um discurso entre pensadores".

Isto, no entanto, é tópico para uma próxima coluna. Por enquanto, aproveito que hoje é feriado para concluir o texto da minha apresentação e usufruir um pouco mais da companhia de Simone de Beauvoir, pois sempre aprendo algo novo quando estamos juntas.

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