Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Maura Lopes Cançado nos conduz com lucidez pelos labirintos da loucura

Com extrema habilidade, escritora mineira denunciou violência em hospício e impôs sentido libertário à sua trajetória

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"Morreu esquecida e conformada", escreveu, certa feita, Carlos Heitor Cony sobre a amiga, que, na breve e brilhante carreira, fora comparada a Clarice Lispector. Para Cony, aliás, comparação que não fazia sentido: "Clarice, de certa forma, viveu em sua redoma. Maura não. Maura não é peixe de aquário: é peixe de oceano, que vai fundo".

Há muitos anos, ouço falar dela: Maura Lopes Cançado, a escritora mineira, de São Gonçalo do Abaeté, cidadela a cerca de 100 km de Pato de Minas. Além do sobrenome, o mesmo de uma amiga de adolescência, sempre me chamou a atenção o título do seu diário, publicado em 1965: "Hospício é Deus". Além deste, publicou ainda, em 1968, uma coletânea de contos, cujo título também pega pelo estômago: "O Sofredor do Ver".

Maura Lopes Cançado em fotografia dos anos 1950 - Reprodução

Ambas as obras, antes raridades de sebos, foram relançadas em 2015 pela editora Autêntica numa caixa preciosa, que comprei e guardei. Após o Nobel para a francesa Annie Ernaux, tirei Maura da estante, minha conterrânea pioneira no Brasil da escrita do eu, o gênero que de, tão em voga, já vinha causando um certo cansaço. Que soco! Em "Hospício é Deus", ela nos conduz pelos labirintos da loucura com tanta lucidez que faz duvidar do significado de sanidade.

Filha de uma abastada família de Minas Gerais, cheia de parentes importantes, desembarcou sozinha no Rio de Janeiro dos anos 1950. Logo, já estava publicando contos no Jornal do Brasil e no Correio da Manhã. A partir de 1958, passou a integrar a equipe do badalado suplemento dominical do JB, ao lado de Cony, Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, Assis Brasil. Porém, a instabilidade emocional sempre a levava de volta ao mesmo lugar: o hospício.

Fase crepuscular

"Acho-me na seção Tillemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Vim sozinha. O que me trouxe foi a necessidade de fugir para algum lugar, aparentemente fora do mundo", escreveu nas primeiras páginas do diário.

O relato começa na infância de menina mimada, com crises agudas de angústia e de euforia. Segue pelos primeiros anos de juventude, em Belo Horizonte, morando num hotel de luxo e protagonizando escândalos na sociedade mineira. Até desembarcar na capital federal.

"Quanto tempo trabalhei no jornal? Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Assis Brasil, e tantos outros, meus protetores. Quase todos os bons intelectuais da nova geração. É de rir. Protetores no bom sentido, como diriam. Mas que bom sentido, se me fizeram sofrer tanto? Por que, como chegar a eles, sem desespero?".

Desta feita, uma briga feia com Reynaldo Jardim a levara de volta ao Engenho de Dentro: "Consegui escandalizar o Carlos Heitor Cony, que já foi padre, e é facilmente escandalizável. Além de julgar estar ferindo o Reynaldo, ao falar coisas inverossímeis e degradantes ao meu respeito. Algo em que pensar: se tem alguma afetividade por mim deve ter sofrido. Como me destruí. Falei de mim tantas vilezas. Já fiz isto com mamãe. Estou muito cansada".

Tanto "Hospício é Deus" quanto "O Sofredor do Ver" foram lançados enquanto Maura permanecia na instituição da zona norte carioca, onde a psiquiatra Nise da Silveira iniciava sua revolução no tratamento mental. No diário, ela vai construindo ao mesmo tempo, com extrema habilidade literária, a protagonista, ela própria, e os fascinantes coadjuvantes: pacientes, enfermeiras, psiquiatras, que ela busca sempre confundir, anarquizar, atacando-os sem piedade nos seus pontos vulneráveis.

O Quadrado de Joana

Se o desejo era sair do mundo ao adentrar o hospício, Maura se percebe prisioneira de outra sociedade. A sociedade das doidas, também regida por imposições de comportamento e pela lógica repressora que ansiava escapar. Na obra, denuncia, grita contra a violência da rotina no manicômio, enveredando também para a autoironia, o desconcertante, a poesia da loucura.

Linda, sensual, elegante e culta —e plenamente consciente do poder da sua sensualidade—, Maura impõe a sua trajetória um sentido libertário. Nos contos que compõem a coletânea, transborda, borra as margens, numa linguagem visual e surrealista. "O Quadrado de Joana", o conto que lhe dera fama, publicado originalmente na capa do caderno de domingo do JB, é uma obra-prima que nos faz literalmente enxergar a esquizofrenia.

Em 1972, já desfigurada pelos eletrochoques, teria o seu episódio mais extremo, que Cony definia como "surtos de uma força escura" e ela como "fase crepuscular". Numa noite de abril, estrangulou e matou uma paciente na clínica de saúde Doutor Eiras, em Botafogo. Julgada e considerada inimputável, terminaria no hospital penal da penitenciária Lemos Brito.

"O que me assombra na loucura é a distância — os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim."

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