Karla Monteiro

Jornalista e escritora, publicou os livros "Karmatopia: Uma Viagem à Índia", ​"Sob Pressão: A Rotina de Guerra de um Médico Brasileiro" (com Marcio Maranhão) e "Samuel Wainer: O Homem que Estava Lá​"

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Karla Monteiro

'Faz o L com o livro' mostra como esquerda gosta de brigar entre si

Ataques a vídeo pró-Lula da Companhia das Letras, associado à 'esquerdinha Leblon', lembram discussões dos anos 1960

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Na ensandecida semana que passou, a Companhia das Letras publicou em suas redes um videomanifesto, com autores da casa fazendo o L (de Lula Lá) com livros.

Entre estes, eu, uma neófita no ofício, orgulhosamente misturada aos bambas: Noemi Jaffe, Heloísa Seixas, Heloisa Starling, Lilia Schwarcz, Andrea del Fuego, Arnaldo Antunes, Chico Buarque, Sérgio Rodrigues, Fernando Morais, Ruy Castro, Lira Neto, Jeferson Tenório, Geovani Martins, Milton Hatoum... mais de 40 nomes da ficção e da não ficção.

"Sabe o que o povo vê quando um artista faz um L com um livro? Vê o professor que em vez de ensinar, doutrina, vê o livro que pode encher a cabeça do filho com ‘ideologia de gênero’, vê o relativismo que ele não sabe o que é mas odeia, vê a arrogância de quem acha ele um boçal", escreveu, no Twitter, um professor universitário de Minas Gerais com quase 22 mil seguidores.

Outro professor universitário, este da Bahia, com 72 mil seguidores, não gostou, porém não desceu às profundezas da alma do "povo". Aliás, nos anos que antecederam ao golpe de 1964, falava-se em "povo" e "antipovo" para clarear as coisas. Após digitar oito vezes "Faz o L com livros", concluiu: "O mundo se acabando lá fora e a gente vai fazer o L com livros?". Para o professor, uma "tática" "tola", "bobinha".

Um jornalista e escritor, com 14 mil seguidores no Instagram, ficou bravo. "Eu tive uma ideia. Vamos fazer um vídeo com vários artistas bacanas fazendo L com os livros? Sensacional! Bora. A gente manda para a Paulinha Lavigne, espalha geral", escreveu, sentenciando: "A esquerda bolha não aprende nunca". Para ele, o vídeo da Companhia das Letras, somado aos intermináveis erros do Lula, citados numa torrente, fazem com que mereçamos o "Bolsonaro Orbán".

Já outro também escritor, com sólida carreira e 55 mil seguidores no Twitter, só pediu que não se use livros na campanha. Pelo jeito, livros e artistas na praça foram coadjuvantes no ocaso de 2018. Também havia escrito qualquer coisa sobre deixar para se sentir bem depois do dia 30. "Apaguei porque estou sem tempo. E saco. Quem entendeu, entendeu". Depois tuitou: "Costumo chamar isto de Ipanema mental".

Nos comentários, um rapaz classificou de "esquerdinha Leblon". Diga-se de passagem, expressão retrô, vai! Há muito tempo a "esquerdinha Leblon" não frequenta mais o Leblon, dominado pelo "antipovo". "Esquerdinha baixo-Bota" seria, talvez, mais atual. Ou "esquerdinha MDMA", como diria minha amiga genial.

A jornalista Cynara Menezes fez três postagens seguidas sobre o assunto. "Mais de oito horas sendo atacada por setores da esquerda e pelos bolsonaristas por postar um vídeo com escritores fazendo o L com livros", lamentou-se no último.

Foram mais de 12 mil comentários: "Por favor, Cynara, para de tentar fazer eu votar em Bolsonaro". "Esse é um dos vídeos mais patéticos desse desastre chamado esquerda na internet. O que essa porra quer comunicar? Inacreditável e desanimador". "Eu vou dar uma pedrada em cada um."

Entre defesas e ataques pulverizados no Twitter: "Meu Deus, porquê nos abandonaste?", "Não tem nada mais esquerda caviar mamadora do dinheiro público que isso". "O pessoal do faz o L com livro só quer aproveitar qualquer oportunidade para ostentar intelectualidade, virtude e superioridade moral", "Eu nunca mais li uma página desde que eu vi faz um L com livros", "Bicho, parece que os caras não vão desistir até perderem todos os votos que conseguiram de quem é anti-PT mas é anti-Bolsonaro", "Se tomar a virada, bota a culpa no Ciro".

Passeando pelas caixas de comentários, fiquei imaginando o Chico Buarque dando uma daquelas incontinentes risadas.

Nos anos 1960, Carlos Lacerda, o megafone do reacionarismo, sempre usava a expressão "esquerda festiva", cunhada pelo colunista Carlos Leonam. Para o ministro San Tiago Dantas, as esquerdas se repartiam entre positiva, que apoiava os conchavos de Jango em nome da governança, e negativa, insuflando a ruptura rumo a um governo puro-sangue. Mas Lacerda gostava de lembrar da existência de uma terceira, composta pelos festivos do Antônio’s, o bar —de onde?— do Leblon.

Se as esquerdas, por seu turno, lutavam contra os gorilas que Lacerda representava, pareciam preferir brigar entre si. Qualquer discordância valia: a favor ou contra a guitarra elétrica, a favor ou contra o "Partidão conciliador", Chico ou Caetano. Conforme a piada, existiam dois CCCs, o Comando de Caça aos Comunistas e o Comando de Caça a Caetano.

Num artigo na revista Civilização Brasileira, Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, dera o diagnóstico: o que estava faltando era "um pouco de pessedismo", em referência ao PSD, o velho partido do deixa-disso.

O amazonense Milton Hatoum nunca frequentou este Leblon imagético. Sua vivência do período aparece na trilogia "O Lugar Mais Sombrio", com dois livros já publicados: "A Noite da Espera" e "Pontos de Fuga". Somando as duas obras, percorremos a trajetória de um jovem amadurecendo nos piores anos da ditadura, da adolescência em Brasília ao exílio em Paris, passando e retornando a São Paulo, para a emblemática Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Na minha opinião, Hatoum encontra-se no Olimpo, entre os grandes escritores de todos os tempos, com obras-primas como "Dois Irmãos", "Órfãos do Eldorado" e "Cinzas do Norte".

Na trilogia ainda inacabada, nós o vemos autobiográfico, trazendo para o delicado relato o pano de fundo de um tempo bruto, repressor, de verdades absolutas, cobranças e julgamentos implacáveis, do dedo em riste, em que o protagonista Martim ia tentando existir.

Retornando ao novo velho mundo, coube a Sérgio Rodrigues sair em defesa do estimado Leblon: "Estou chocado. Acabo de ser informado de que não é fazendo L com livro que nós vamos derrubar Salnorabo. Como assim, tem certeza disso? Eu podia jurar que era só apontar o bicho para câmera e apertar a orelha e puf, nunca mais haveria fascismo sobre a terra".

Erramos: o texto foi alterado

De acordo com Zuenir Ventura, em "1968: o Ano que Não Terminou", a expressão "esquerda festiva" foi cunhada por Carlos Leonam, não por Carlos Lacerda.

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