Katia Rubio

Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de "Atletas Olímpicos Brasileiros"

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Katia Rubio

Atleta no Brasil nasce para ser shakespeariano, não da comédia, mas da tragédia

Anne Marcelle era obrigada a pagar para treinar no Centro de Treinamento da CBTArco

Parece ser próprio dos brasileiros achar que essa coisa de “melhor do mundo” cabe bem aos nossos vizinhos do sul. E com esse espírito acabam por debochar, ou desvalorizar, aquilo que temos de melhor. E pior. Tendem a achar que a galinha do vizinho bota ovo muito mais amarelinho do que as suas próprias penosas.

Quem conhece um pouco da saga de atletas brasileiros muda o comportamento e o discurso. Sabe que nos poucos minutos visíveis em que se desenrola a competição estão sintetizados anos de treinos e de vida que dão argumentos para filmes, séries e minisséries que já nascem fadados a ganhar prêmio. E nem é preciso carregar na emoção: atleta no Brasil nasceu para ser shakespeariano, não da comédia, mas do drama e da tragédia.

Parece incrível, mas essa semana Anne Marcelle, do tiro com arco, ganhou uma causa que anuncia uma mudança importante nos rumos do esporte no país. Uma denúncia anônima revelou que atleta integrante do Time Brasil, e detentora do melhor resultado olímpico brasileiro da modalidade na história, era obrigada a pagar para treinar no Centro de Treinamento da CBTArco.

Maricá, local onde a Confederação Brasileira de Tiro com Arco tem um centro de treinamento - FOLHA DE S.PAULO

Exatamente. Uma atleta olímpica, que representa o país mundo afora, pagava R$ 250 por mês para treinar em um local mantido com dinheiro da Lei Agnelo Piva e da Lei de Incentivo. É sempre bom lembrar que esses recursos são públicos, portanto, a prestação de contas de tais valores respeita as normas da administração pública. E parece que muitos gestores esquecem ou desconhecem tal realidade. Porém, todos sabíamos que havia muita coisa de podre no reino da terra brasilis.

Em tempos em que parece que pedir desculpas resolve problemas legais, o caso foi analisado e publicado pelo Comitê de Ética do COB, que não tem a força de aplicar as penalidades das leis maiores, mas anuncia publicamente uma falta ética. A devolução dos valores pagos é o resultado concreto dessa aberração, mas ele também anuncia uma mudança de postura da instituição maior do esporte olímpico brasileiro em relação a atitudes e comportamentos. O COB deixa claro que vivemos em um tempo em que é preciso aplicar valores e não apenas anunciá-los como parte da cartilha olímpica.

Lembrando de cenas medievais, sentenças não são dadas e aplicadas com portas fechadas, e à meia luz, para que poucos saibam dos deslizes cometidos. Determinar que o resultado da apuração seja publicado nos meios de comunicação e na página eletrônica do Comitê demonstra uma intenção de fazer a coisa pública ser efetivamente entendida como não privada.

Os anos de laissez faire parecem se esgotar. Atletas, dirigentes, fornecedores e todos os envolvidos na roda do esporte precisam entender que a instituição esportiva não é um universo paralelo da sociedade. Ter valores próprios, capturados dos valores universais, não significa estar acima do bem e do mal, ou à margem das leis maiores. Se somos feitos do mesmo material dos sonhos, é preciso estar atento para que os gases inebriantes do poder não os tornem pesadelos. 

Imagino que diante dessa decisão haja outros tantos dirigentes preocupados com o futuro. Afinal, como escreveu o poeta inglês, “a suspeita sempre persegue a consciência culpada; o ladrão vê em cada sombra um policial”.

E não poderia terminar sem dar um “mahalo” a Gabriel Medina, melhor do mundo pela segunda vez. Que o surfe, mesmo olímpico, não perca nunca seu estilo de ser e viver.

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