A ex-presidente da Bolívia, Jeanine Áñez, será julgada neste ano pelo alegado delito de não cumprimento de deveres e resoluções contrárias à Constituição Política do Estado.
O processo será desenvolvido no âmbito de um Poder Judiciário que foi extremamente questionado pela opinião pública devido à sua dependência política e à constante interpelação à ex-presidente por setores alinhados ao partido MAS (Movimento ao Socialismo), que a acusam de ser uma líder golpista por assumir a Presidência em 2019 sem respeitar os procedimentos internos da Assembleia Plurinacional.
No entanto, deve-se ter em conta que Áñez assumiu a Presidência baseada em uma sentença constitucional e em um momento crítico devido à lacuna de governo, a fim de evitar um caos maior, na sequência da renúncia de Evo Morales e de todas as autoridades às quais correspondia a sucessão presidencial.
Esse acontecimento político continua polarizando a sociedade boliviana, e a questão permanece em aberto é: Áñez é vítima de um sistema judicial politicamente dependente do governo no poder ou culpada da morte de civis que se manifestavam a favor do ex-presidente Evo?
Vítima de um sistema judicial politizado?
Seis fatores devem ser levados em conta para compreender a ascensão de Áñez à Presidência de forma interina e o seu reconhecimento legal pela Assembleia Legislativa com maioria do MAS.
Primeiro, Evo violou a Constituição quando concorreu para um quarto mandato consecutivo em 2019, após um referendo que lhe negara a Presidência em 2016.
Segundo, os congressistas do MAS não participaram da sessão extraordinária da Assembleia convocada para resolver a lacuna de poder.
Terceiro, em 12 de Novembro de 2019, depois de Añez ter assumido a Presidência, o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) deu o seu respaldo legal à sucessão no marco da Sentença Constitucional 0003/01 de 31 de julho de 2000, que se sustenta na "vaga" do presidente.
Quarto, Evo foi quem convocou a OEA (Organização dos Estados Americanos) para auditar as eleições.
Quinto, há as irregularidades do processo eleitoral de 2019, demonstradas pelos observadores da OEA.
E, por último, o Artigo 4º da Lei Excepcional para a Prorrogação do Mandato Constitucional das Autoridades Eleitas, assinado pelos representantes do MAS em janeiro de 2020, declara que "excepcionalmente, se prorroga o mandato da presidente do Estado Plurinacional... até a tomada de posse das novas autoridades".
A crise sociopolítica de 2019 colocou Añez como um ator-chave com uma margem de ação porque a sua investidura proporcionou segurança institucional face ao caos desenvolvido antes, durante e depois da cadeia de renúncias do partido no poder (MAS) que levou à anarquia política.
No entanto, neste ano Áñez encontra-se vítima de um sistema judicial que é altamente questionado pela sua parcialidade quando se trata de opositores políticos do MAS.
De acordo com a sua defesa legal, existem numerosas ilegalidades no processo, incluindo seu estado de saúde, já que se encontra em greve de fome; o desenrolar do caso e o julgamento por intermédio de tribunais ordinários e não na Assembleia Legislativa e por meio de um juízo de responsabilidades; entre outras.
Culpada da morte de cidadãos?
Um acontecimento infame no início da gestão de Áñez foi a morte de mais de 30 cidadãos nas localidades de Senkata (La Paz) e Sacaba (Cochabamba), como resultado de operações militares e policiais.
Esse é o eixo da interpelação por parte do MAS sobre o seu governo interino e as condições político-institucionais sob as quais foi nomeada presidente da Bolívia.
Para explicar o questionamento do MAS sobre as condições político-institucionais em que assumiu como primeira mandatária, identificamos quatro certezas jurídicas.
Em primeiro lugar, a Assembleia Plurinacional não se reuniu para admitir ou negar a renúncia de Evo da Presidência.
Em segundo lugar, a maioria parlamentar não estava presente para receber o juramento de posse da presidente.
Em terceiro lugar, a Constituição estabelece uma linha de sucessão presidencial até o presidente da Câmara dos Deputados (Áñez era segunda vice-presidente do Senado em representação do bloco opositor minoritário).
Por último, o Decreto Supremo nº 4078 ,de 15 de novembro de 2019, isenta de responsabilidade penal o contingente das Forças Armadas que participou no reestabelecimento da ordem interna.
Em suma, as violações da Carta Magna e as mortes propiciaram o cenário para que o MAS acuse a Áñez de culpada de violação da ordem constitucional.
Paradoxal, catastrófico, injusto e condenável
É paradoxal que a Assembleia Plurinacional, que não lhe prestou juramento para tomar posse em 2019, tenha depois prolongado o seu mandato em 2020, e que o Tribunal Constitucional a reconheça como primeira mandatária na altura e depois, com o novo governo, de Luis Arce, o negue.
Foi catastrófico o Decreto Supremo que deu luz verde aos militares para disparar contra os cidadãos mobilizados, livre de qualquer responsabilidade penal.
É injusto um sistema de justiça que não permite o devido processo a uma ex-mandatária porque carece de um poder político que a respalde.
E é condenável violar a Constituição, como Evo fez para concorrer pela quarta vez consecutiva à Presidência, e como Áñez fez na Assembleia Plurinacional para ser empossada como primeira mandatária.
Essa dupla condição de vítima e culpada de Áñez é contraditória porque responde a diferentes certezas, critérios, ideologias e premissas.
Não há uma verdade única. Para alguns, Áñez é um símbolo de democracia e resistência; para outros, de golpe de estado e morte.
Portanto, como não é um caso politicamente solucionável, continuará polarizando a política boliviana, o que beneficia uma minoria e prejudica a maioria.
Tradução de Giulia Gaspar
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