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A 'morte cruzada' da política no Equador

Presidente assinou decreto para desbloquear conflitos entre Executivo e Legislativo

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Julio Echeverría

Doutor em sociologia pela Università degli Studi di Trento (Itália)

O presidente do Equador assinou, na manhã de quarta-feira 17 de maio, o decreto de dissolução da Assembleia Nacional, aplicando pela primeira vez no país o artigo 148 da Constituição aprovada em 2008. Esse dispositivo, conhecido como "morte cruzada", foi criado para desbloquear conflitos institucionais entre as funções do Estado, em particular entre os Poderes Executivo e Legislativo. A ideia dos constituintes ao redigir a Constituição era proteger o presidente e evitar sua possível destituição arbitrária pelas mãos de maiorias legislativas incontestáveis.

O mecanismo de morte cruzada é um recurso do presidente da República frente a uma situação de "grave crise política". A caracterização dessa situação fica a critério do presidente e não requer a qualificação de nenhum outro órgão do governo. É uma característica do hiperpresidencialismo equatoriano, que, no entanto, aplica princípios de uma democracia parlamentar ao forçar novas eleições quando o conflito entre o Executivo e o Legislativo impede a ação do governo.

O presidente do Equador, Guillermo Lasso, com Lula em Brasília - Ricardo Stuckert - 30.mai.23/PR/Divulgação

A aplicação da morte cruzada fecha um ciclo de conflito político entre o Executivo e o Legislativo e abre outro, com a renovação das autoridades em ambas as funções do Estado. A Constituição estipula que o Conselho Nacional Eleitoral deverá convocar imediatamente eleições para presidente e membros da Assembleia para que completem o tempo restante de mandato. De acordo com os prazos entre a convocação, a eleição e a nomeação das novas autoridades, está previsto um período não superior a seis meses, no qual o atual presidente governará sem um órgão legislativo e poderá aprovar, por decreto, leis de urgência econômica, mediante sua qualificação por parte da Corte Constitucional.

Visualiza-se então um período em que o governo em exercício pode realizar seu trabalho sem as travas ou os obstáculos que podem ser impostos pela Assembleia Nacional. Durante esses meses, o partido do governo e sua coalizão têm a possibilidade de reconfigurar suas linhas de ação e se fortalecer no período que antecede as eleições, em que se prevê que o atual presidente busque a ratificação de seu mandato.

As consequências dessa conjuntura para as outras forças políticas são diferenciadas. O que para alguns é uma oportunidade, para outros é um grave prejuízo. Esse é o caso do tradicional partido de direita, o Partido Social Cristão, um aliado do correísmo no processo de impeachment do presidente, que se viu em um cenário de fortalecimento se ele fosse destituído. A ascensão do vice-presidente ao novo cargo poderia ter significado uma aproximação dele a um governo possivelmente mais alinhado à sua tendência política.

O social-cristianismo saiu muito mal de sua aliança com o correísmo. Nas últimas eleições, perdeu a prefeitura de Guayaquil, seu reduto político histórico, mas seu retrocesso é notório em todo o país e não é mais uma opção para a Presidência. Ele certamente sofrerá uma redução no número de representantes na próxima Assembleia Nacional.

Os outros partidos de centro-esquerda, Pachakutik e Izquierda Democrática, que pareciam ter recomposto suas bancadas nas últimas eleições, também são vítimas de sua aproximação com o correísmo. As cisões dos setores atraídos pela força da maioria correísta na Assembleia desarticularam todas as suas projeções. As figuras por trás de seu êxito eleitoral (os candidatos presidenciais Yaku Pérez e Javier Hervas) já não militam em suas bancadas. A liderança do Pachakutik está em disputa e o movimento sofre assédio da Conaie, a organização histórica dos indígenas, que quer assumir o controle total do movimento.

Apoiadores do candidato do movimento Pachakutik, Yaku Perez, na campanha eleitoral de 2021 - Rodrigo Buendia - fev.21/AFP

Esse não é o caso da Unes (Unión por la Esperanza), o partido do correísmo, que liderou a estratégia do impeachment e que sai dessa conjuntura relativamente ileso. Por um lado, está sofrendo o efeito da destituição da Assembleia, onde havia conseguido consolidar seu domínio absoluto, mas, por outro lado, emerge como a força mais bem posicionada para a próxima eleição. A fragmentação das oposições pode favorecê-lo nas eleições presidenciais e legislativas. Sua contestação à morte cruzada foi morna, já que vinha preparando suas forças para possíveis eleições.

Embora a morte cruzada seja um expediente constitucional e legal, sua aplicação não tem precedentes na história constitucional do país, o que gera grande incerteza. O institucionalismo está mais uma vez sendo posto à prova e é forçado a demonstrar sua capacidade de contenção.

Três entidades serão fundamentais para a condução de um processo político extremamente complexo: o Conselho Eleitoral e a Corte Constitucional. O Conselho Eleitoral tem a tarefa de organizar, em um prazo curto, um processo eleitoral transparente e eficiente em um cenário político tenso. Por sua vez, a Corte Constitucional, que terá de monitorar as ações do Executivo para que não excedam os parâmetros constitucionalmente estabelecidos, na ausência de um órgão legislativo para supervisionar seu desempenho, em particular, terá de qualificar a constitucionalidade dos decretos de emergência econômica aos quais o Executivo pode recorrer e que se tornaram seu principal instrumento de gestão e legislação. A operação de estabelecer limites claros sem intervir como um ator político do processo poderia consolidar essa instituição como a mais importante garantidora da democracia e dos direitos constitucionais.

É previsível que o Conselho de Participação Cidadã e Controle Social, um organismo que deveria ser caracterizado por seu apartidarismo e que recentemente renovou sua composição, possa introduzir turbulências no processo político. Ele está claramente alinhado ao correísmo e declarou sua intenção de substituir a legislatura em sua tarefa de fiscalização. É muito provável que o correísmo tente usar esse organismo como um pivô para recuperar o poder.

A aplicação da morte cruzada no Equador demonstrará se ela é útil como uma válvula de escape para as tensões políticas entre as funções do Estado, além de ser concebida como uma blindagem pura contra o hiperpresidencialismo. Se funcionar, os países da região terão uma importante lição para aplicar em seus próprios projetos institucionais.

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