Lúcia Guimarães

É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

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Lúcia Guimarães

Bolsonaro terá que seguir o exemplo de Henry Kissinger

É difícil imaginar que os múltiplos crimes já cometidos plantem o brasileiro num assento de réu em Haia

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Jair Bolsonaro e Henry Kissinger provavelmente nunca se encontraram. Quando ainda frequentava Brasília, o ex-secretário de Estado e ex-assessor de Segurança Nacional dos governos Nixon e Ford não perdia tempo com rachadistas do baixo clero, ia direto ao Planalto conversar com "o velho amigo" FHC.

Mas Kissinger e o capitão reformado compartilham pelo menos uma preocupação. Podemos especular que nenhum dos dois será visto na lendária loja Harrod’s de Londres ou passeando por Paris para umas comprinhas na Galeries Lafayette. O motivo é o mesmo —ambos são acusados de crimes que resultaram em mortes em massa.

Ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, no Departamento de Estado dos EUA
Ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger, no Departamento de Estado dos EUA - Tim Sloan - 22.out.07 /AFP

O americano, hoje com 98 anos, escapou em 2002, quando uma visita anunciada a Londres foi precedida por dois pedidos: um do juiz espanhol Baltasar Garzón para interrogá-lo sobre seu envolvimento na infame Operação Condor, aliança repressiva de ditaduras militares latinas da qual o Brasil fez parte; outro registrado numa corte britânica por um ativista de direitos humanos que tentou, sem sucesso, obter a prisão de Kissinger por crimes de guerra no bombardeio secreto do Camboja durante a Guerra do Vietnã, entre 1969 e 1973, com um número de vítimas civis estimado em até 150 mil.

Desde o pequeno susto em Londres, o ainda ativo decano da diplomacia americana evita certas freguesias. É natural que Kissinger tenha sido assombrado pelo precedente, em 1998, da histórica prisão do já falecido ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, a mando do mesmo juiz Garzón, que o processou por crimes contra a humanidade.

Essa modalidade de crime foi introduzida no julgamento dos oficiais da Alemanha nazista em Nuremberg, em 1945. Mais de sete décadas depois dos primeiros vereditos, a expectativa de uma Justiça que transcenda fronteiras continua sendo frustrada especialmente por poderes como EUA, China e Rússia, que não reconhecem os estatutos do Tribunal Penal Internacional.

Todos os réus de Haia, no momento, são negros africanos que, como sabemos, não detêm o monopólio da criminalidade hedionda.

Ainda que, como sugeriu o senador Renan Calheiros (MDB-AL), o relatório da CPI da Covid possa ser enviado ao TPI, é difícil imaginar que os múltiplos crimes já cometidos plantem Jair Bolsonaro num assento de réu em Haia. É mais fácil prever que ele vai seguir o exemplo de Henry Kissinger, mesmo porque a comunidade da Justiça criminal internacional está ativa na promoção de mais um crime —o ecocídio— como passível de julgamento numa corte como Haia.

Não faltam céticos sobre a viabilidade jurídica de indiciar governantes pela destruição do meio ambiente com consequências globais. Mas, no momento, Bolsonaro é o "pôster boy" dos que querem testar essas águas. No caso brasileiro, ecocídio e genocídio de povos indígenas são vistos como crimes complementares.

Os céticos do presente talvez não saibam que o judeu polonês responsável por cunhar o crime de genocídio no final da Segunda Guerra, Raphael Lemkin, enfrentou grande resistência inicial.

Quem imaginaria a cena de 2020 em Haia, quando Aung San Suu Kyi, ganhadora de um Nobel da Paz, teve que se defender da acusação de genocídio da minoria rohingya em Mianmar?

Jair Bolsonaro pode não enfrentar a Justiça internacional. Mas, assim que deixar o governo, deve começar a selecionar seus destinos turísticos.

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