Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Rei morto por uma farpa, plebeu que sobreviveu a um tiro

Conseguir reclamar com uma bala cravada no cérebro é algo inusitado

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Em um hospital havia um homem com pouco mais de 35 anos, que, assustado, reclamava de dor. Pouco tempo antes ele varria aborrecidamente a padaria em que trabalhava. A limpeza foi interrompida por assaltantes, que, não satisfeitos em roubar, despediram-se em salvas de tiros. Um atingiu a testa do trabalhador —por isso ele sofria a algia.

Conseguir reclamar com uma bala cravada no cérebro é algo inusitado. Ele também surpreendia ao responder precisamente as perguntas que lhe eram encaminhadas. Além disso, movia seus braços e pernas quase normalmente.

Para um desavisado que olhasse o paciente rapidamente, apenas o buraco na testa e um tiquinho de sangue orifício afora chamariam a atenção de que algo grave poderia ter ocorrido. Sua tomografia de crânio, no entanto, contrastava com aquela descrição clínica, pois destacava um ferimento no hemisfério cerebral direito envolto por um hematoma. Os médicos que olharam apenas a tomografia presumiam, erroneamente, que o exame era de um paciente em coma.

A vítima não via uma luz que o chamava para o além nem assistia a vida passar como um filme. Apenas não se conformava com a maldade que sofrera, em resmungos. Após ser avaliado no pronto-socorro, foi operado. Poucos dias depois, recebeu alta com plena saúde.

Henrique 2º, que foi rei da França durante o século 16 e que morreu devido a uma infecção
Henrique 2º, que foi rei da França durante o século 16 e que morreu devido a uma infecção - Reprodução

O acaso foi determinante para a sobrevivência do homem. Seu destino seria a morte se o projetil penetrasse centímetros a mais, ou se tivessem sido derramados alguns mililitros a mais de sangue.

Mas às vezes o acaso atua contra. Por exemplo, centímetros contribuíram para a morte precoce do rei Henrique 2º da França. Durante um duelo esportivo em 30 de junho de 1559, o monarca foi atingido no ombro pela lança de seu oponente. A lança se fragmentou, desprendo farpas que feriram testa e olho direito do rei.

Os médicos que o atenderam limparam as feridas da testa, mas acreditaram que não deveriam extrair o fiapo de madeira fincado no olho real. Isso porque simularam o trauma utilizando cabeças de prisioneiros decapitados, e concluíram que a farpa não alcançaria o cérebro. Zelosos, não deixaram de prescrever purgantes e sangrias ao rei.

O líder francês seguia razoavelmente bem, quando em 9 de julho sofreu uma convulsão e teve seu lado direito do corpo paralisado. O famoso médico Andreas Versalius percebeu que o rei estava com a nuca rígida, sinal clínico que indica meningite. Para piorar, saia pus do olho direito.

Os doutores cogitaram abrir um buraco no crânio do monarca, procedimento chamado de trepanação, mas ponderaram como futilidade.  Estavam cientes que nada mais salvaria a vida do rei. Em 10 de julho de 1559, aos 40 anos, Henrique 2º morreu. O cadáver foi submetido à necropsia, que evidenciou sinais de putrefação e gangrena na meninge, membrana que envolve o cérebro.

Debruçando sobre registros históricos, podemos agora compreender como Henrique 2º sucumbiu. Uma farpa, de poucos centímetros, levou bactérias para o interior do olho direito. Ali causaram uma infecção que, sem tratamento, acometeu osso e depois o cérebro.

O que havia de melhor na medicina no século 16 não salvou o homem mais poderoso da França. Mas os renascentistas já exercitavam curiosidade, dedicação e busca pelo método adequado. Com a evolução do pensamento, sangrias deixaram de ser uma panaceia e purgantes também (mas nem tanto). Ensaios com cabeças de decapitados foram abandonados. Felizmente, conhecimentos foram aperfeiçoados e ajudaram a salvar o modesto homem da padaria.

A morte precoce de Henrique 2º possivelmente alterou o curso da história francesa. Quando em vida, o líder francês freava o iminente conflito entre protestantes e católicos. Anos após seu falecimento, a França dividiu-se em uma guerra civil-religiosa. O tiro que acertou a cabeça do funcionário da padaria foi mais um da histórica violência brasileira.

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