Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

Covid-19, experiências e expectativas, e o consultório do neurologista.

Na H1N1 pensei que médicos não envolvidos com doenças respiratórias ficariam ociosos; estava errado

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Quando o novo coronavírus estava prestes a estrear suas tragédias nas terras brasileiras, tínhamos dúvidas e receios. Tais quais as que fomentávamos em 2009, em instantes preliminares à epidemia da gripe H1N1. Sobre nossas cabeças, transitava uma aflita ansiedade sobre o mal que se aproximava e qual sorte de problemas traria. Nós, os seres que se esbarram em corredores hospitalares, sem certezas, especulávamos sobre diversos cenários possíveis que nos aguardavam, às vezes pessimistas, outras nem tanto. Suspeitávamos que médicos não envolvidos diretamente no enfrentamento às infecções respiratórias ficariam ociosos, já que os leitos de internação seriam tomados por quem sofresse da infecção.

Eu, portanto, um neurologista, teria muito menos trabalho do que habitualmente. Quando a doença de fato chegou ao Brasil essa premissa se desfez. A doença da moda não faz das outras démodé. Por isso, os males neurológicos continuaram a afligir, no seu ritmo habitual. No auge da epidemia gripal, meu trabalho se manteve intenso ao redor de pacientes com outros problemas. As questões se modificavam, conforme decorrem as fases da epidemia. Assim, novas expectativas serão criadas para mais para frente serem confrontadas por novos acontecimentos.

Uma das primeiras expectações sobre a atual crise de saúde seria se passaríamos por quarentena. Essa medida foi adotada assim que a sirene tocou. Às vésperas de ser decretada, meus sócios e eu planejávamos cuidados a implantarmos no consultório. Considerávamos existir o risco de nossa sala de espera torna-se um ponto para disseminação viral. Já que havia alta probabilidade de que algum de meus colegas, defendendo suas especialidades —pneumologia e clínica geral—, atendesse uma pessoa contagiada pela Covid-19.

Eu receava que meus pacientes com sintomas neurológicos saíssem de meu consultório com mais uma doença. Para evitarmos este problema, combinamos que por telefone faríamos perguntas básicas aos clientes no dia anterior à consulta. Se esta conversa trouxesse suspeição de que o paciente estivesse com infecção, ele seria atendido em seu domicílio, ou em hospital, sob rigorosas formas de isolamento.

Mas um dia antes da data inaugural da quarentena, um incidente me trouxe conclusões importantes. Uma paciente não compareceu ao consultório, por motivos banais. As queixas da cliente, aliás, muito comuns em consultas aos neurologistas, eram tontura e dor de cabeça, iniciadas há quatro dias. Vinte e quatro horas após a abstenção, os familiares solicitaram que eu a atendesse em um hospital. Estava pior. Conversando com ela, ficou claro que a tontura era na verdade uma fraqueza, antecedida pela perda de olfato. Naquele dia, começou a sofrer febre e falta de ar. O diagnóstico foi confirmado dias após: Covid-19.

Foi mais uma prova de que doenças nem sempre se manifestam da forma mais comum. Por isso, o neurologista aqui quase atendeu em seu consultório uma pessoa com o novo coronavírus. Felizmente, o cancelamento evitou que outras pessoas ficassem expostas ao contágio em minha sala de espera. Ficou muito claro que nossas ações no consultório deveriam ser repensadas. Felizmente o conselho regional de medicina permitiu atendimento remoto, por telemedicina, o que reduz distâncias, e impedem exposições. Mas, obviamente, não há normalidade.

Pois, muitos dos hospitais —se não todos— concentraram seus recursos para o combate a pandemia, e criaram contingências para a possível iminente superlotação. Então, vários procedimentos médicos, considerados não tão urgentes assim, foram impossibilitados. Como consequência, enfrentaremos atrasos em diagnósticos e por conseguinte, em tratamentos. E esse obstáculo já tenho em minha prática.

Os efeitos destas postergações ficarão mais evidentes mais para frente. Por ora estão eclipsados pelos transtornos provocados pela pandemia. Enquanto isso, acumulamos conhecimento sobre a Covid-19. Sabemos que, comumente, causa alterações leves, mas que continuam por mais dias do que as que surgem por outras infecções virais.

Essa persistência é um problema especial para pacientes com formas graves da doença, já que terão que lutar por mais tempo em busca da cura. Aprendemos também que, por vezes, os pacientes pioram catastroficamente em uma fase da doença. Se fosse gripe(zinha) só melhorariam. E já não nos surpreendemos, quando a infecção se despe de suas manifestações habituais como a famosa tosse seca e febre; mas, surge evidenciada por dor abdominal, alterações em pele, cefaleia, vômitos, e a já citada perda de olfato.

Todas estas informações se alastram como nunca. Claro, esta é a primeira pandemia ladeada pelo uso disseminado do WhatsApp. Colegas médicos trocam experiências, esperanças, medos, angústias, difundem atualizações, desabafam sobre esgotamento mental e emocional. Prescrevem cloroquina dentro de protocolos, desconfiam da cloroquina e aguardam os desfechos clínicos sobre a cloroquina. E comentam que parece que o sacrifício de quem fica em casa parece estar de fato reduzindo a velocidade de avanço da infecção.

Mas estamos apenas no começo, testando novas expectativas.

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