Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

A voz interna que constrói o seu frágil mundo

O cérebro humano suporta a vasta arquitetura da linguagem, porque a voz se fez necessária

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"No princípio era o Verbo. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. A vida estava nele e a vida era a luz dos homens." Por palavras que saem da boca, ou que escrevemos, nossos verbos narram o mundo. Entretanto, nossas conjecturas são frases invisíveis e silenciosas, audíveis apenas em nossas mentes. Nosso cérebro é capaz de criar sinais elétricos que produzem sensações, sem que exista um estímulo externo. Este recurso gera a fala interna, e leva a consciência até a um sentido.

A compreensão e a expressão verbal são produtos da função de centros cerebrais bem delimitados, no hemisfério cerebral esquerdo. Entretanto, a linguagem rica exige muito mais espaço. O conhecimento é associado às palavras graças às conexões que unem esses núcleos à periferia cerebral, em fluxos dinâmicos e reconfiguráveis. Para que entendamos a palavra "caminhar", há trabalho no setor encefálico responsável por movimentos. Para que compreendamos "campainha", é solicitada a área cerebral que cuida da audição; "azul", áreas do córtex visual; "queijo", córtex olfatório; "tristeza", o cerne das emoções, a amígdala. Os significados das palavras espalham-se em muitos canais de neurônios.

Ilustração de  um homem careca com as duas mãos cobrindo o rosto, pensativo
Wolfgang Eckert por Pixabay

O cérebro humano suporta a vasta arquitetura da linguagem, porque a voz se fez necessária. Questão de evolução. A pressão natural beneficiou nossos ancestrais que organizaram sociedades, e palavras auxiliaram a coesão das pessoas. A natureza social da linguagem nos equipa com recursos semânticos para que possamos inferir sobre a mente dos outros, colocando nomes em características. Voltamos esta aptidão para dentro de nós, temos as reflexões que criam o conceito do que nos é próprio.

Nomear favorece a percepção consciente. Por exemplo, dar nome aos componentes musicais, como ritmo, estilo, notas, faz estes nuances transformarem-se em conceitos, que podem ser estudados. Rotulamos pessoas como forma econômica de compreendê-las. Obviamente, nem tudo precisa ser verbalizado para ser percebido, mas as palavras trazem as oportunidades de pensar sobre categorias abstratas, e sobre alegorias que não são naturais. Aspectos como crenças, atitudes, traços de personalidade ou virtudes pessoais dificilmente podem ser trazidos à consciência sem autoverbalizações. A nossa conversa interna nomeia o pensamento, e faz emergir a habilidade de se ter consciência de estar consciente.

Representações mentais —de vivência, inferências, ou imaginação— incorporadas às memórias são transformadas nas palavras da nossa voz interna. O fluxo de recordações e as representações mentais escapam do controle da vontade e da consciência. Isso quer dizer exatamente o que você, querida e perspicaz leitora já percebeu: as frases formadas em nossa mente, que nos fazem conscientes, são subprodutos de processos neurais inconscientes e automatizados.

Podemos compreender melhor o impacto da voz interna, quando analisamos as consequências de sua ausência. Helen Keller nasceu surda e cega. Quando aprendeu uma língua, a primeira metade de sua infância já havia acabado. Em seu livro "The World I Live In" ("O Mundo em que Vivo") ela escreveu: "Antes de minha professora chegar até mim, eu não sabia quem eu era. Eu vivia em um mundo que não era um mundo. Não tenho esperanças de descrever aquela inconsciência adequadamente, ainda que tenha consciência daquele tempo vazio." "Eu não sabia que eu sabia algo ou que eu vivia, agia ou desejava. Já que eu não tinha o poder do pensamento, eu não comparava um estado mental com outro. Quando aprendi o significado de 'eu' e 'mim' e descobri que eu era algo, comecei a pensar. Então a consciência existiu pela primeira vez para mim."

A autora Lauren Marks perdeu a capacidade de falar e compreender a fala por causa de uma hemorragia cerebral. As sequelas não foram permanentes, quando reabilitada, escreveu sobre o período em que não alcançava o verbo: "Eu tinha uma mente vazia, uma mente à deriva. Eu estava incrivelmente focada no presente, com muita pouca consciência ou interesse em meu passado ou futuro". "Todo o meu ambiente parecia interconectado, como uma célula de um organismo grande que respira. Eu me sentia menos como eu mesma e mais como tudo ao meu redor. Acho muito, muito difícil acessar um senso de si mesmo (personalidade e/ou preferências) quando você não tem acesso à sua própria voz interna. O ego parece estar parcialmente ligado à habilidade linguística de expressar esse ego."

Não temos certeza se estes relatos espelham as consequências puras do diálogo interno ausente. O estado mental descrito por Hellen ou Lauren pode ter mais causas, como outras lesões cerebrais, medicamentos e várias privações sensoriais. E os relatos delas podem estar contaminados por viesses de memória. Entretanto, é possível que elas descreveram um estado psíquico constante em nós, mas despercebido por estar eclipsado por palavras. O momento pré cognição, que não alcança a consciência formal. O pilar do nosso raciocínio, o que nos permite saber e reconhecer, sem que consigamos descrever e explicar. A base também de um monte de mal-entendidos.


Referências:

1. Martinez-Trujillo, Julio. "Corollary discharge: Linking saccades and memory circuits in the human brain." Current Biology 32.14 (2022): R774-R776.

2. Zwaan RA, Radvansky GA. Situation models in language comprehension and memory. Psychol Bull. 1998 Mar;123(2):162-85. doi: 10.1037/0033-2909.123.2.162. PMID: 9522683.

3. MARKS, Lauren. A Stitch of Time: The Year a Brain Injury Changed My Language and Life. Simon and Schuster, 2017.

4. Skipper JI. A voice without a mouth no more: The neurobiology of language and consciousness. Neurosci Biobehav Rev. 2022 Sep;140:104772. doi: 10.1016/j.neubiorev.2022.104772. Epub 2022 Jul 11. PMID: 35835286.

5. The project Gutenberg eBook of the world I live in , by Helen Keller [WWW Document], n.d. URL 〈https://www.gutenberg.org/files/27683/27683-h/27683-h.htm〉

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