Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Efeito McGurk: ilusões auditivas fruto de inferências e o vídeo besta da chapação mental

A memória armazena padrões de movimentos labiais para sons vocais e, a partir de um fonema, imaginamos como a boca mexe

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Uma descoberta importante para a neurociência aconteceu em 1976. O psicólogo Harry McGurk e seu assistente John MacDonald notaram que muitas pessoas ao verem lábios se movendo em silêncio para dizer "ga", mas sincronizados com o som "ba", escutaram "da". Este fenômeno é reconhecido como efeito McGurk, de muitas variações facilmente encontradas em vídeos na internet, prontinhos para lhe convencer, cética leitora.

Mas não é apenas o que se vê que pode atrapalhar o que se ouve. O efeito McGurk pode vir à tona às custas de estímulo tátil. Um ventinho no pescoço aumenta as chances de perceber um som que demanda expiração de ar, por outro que não. Desta forma, voluntários ingleses entenderam "p" por "b" expressos em sotaque britânico.

obra de arte
Fotografia de Lenora de Barros da série 'Poema', de 1979, exibida na mostra 'A Máquina do Mundo', na Pinacoteca de São Paulo - Isabella Matheus/Divulgação

Amigável leitora, não digo que compreendemos a fala por influência de ar soprado no pescoço. Mas o cérebro integra informações relevantes para a consciência da linguagem, não importa a modalidade sensorial.

Esta fusão faz emergir a experiência consciente unificada. Logo, o que nós percebemos do mundo é uma adição e média dos elementos ambientais computados em nossos neurônios. Nossa consciência emerge de um trabalho probabilístico, quanto mais coincidentes no tempo e espaços for o surgimento de dois ou mais estímulos sensoriais, maior a possibilidade de suas origens estarem no mesmo evento externo, e, portanto, maior a chance de serem integrados em nossa massa cinzenta.

Nossa memória armazena padrões de movimentos labiais para determinados sons vocais. Conseguimos ler lábios porque recordamos e reconhecemos estes padrões. Somos capazes também do movimento oposto, a partir de um fonema, conseguimos imaginar como a boca mexe. Mas quando há incongruência entre estímulos síncronos ocorre a falha da integração, e o cérebro cria uma impressão que melhor atenda à soma das duas percepções, e as harmonizam. Não nos damos conta da inconsistência. Não diremos: "vi seus lábios moverem para tal som, mas o fato é que ouvi outra coisa".

O efeito McGurk parece ser blindado à cognição, já que pessoas ainda relatarão sua influência mesmo se previamente alertadas de que ouvirão algo incompatível com o que enxergarão. Mas não é assim totalmente. Por exemplo, o efeito perde sua força se a atenção visual é atenuada. Conselho prático: em certos momentos, fechar os olhos pode ser um bom recurso para ouvir fidedignamente. As pessoas são melhores em captar as emoções dos outros quando se concentram na voz, ao invés de observá-las em suas atitudes.

Ao desvendarmos as bases neurais do efeito McGurk compreendemos melhor o cérebro. Este órgão economiza energia por não ter que constantemente entender o que está acontecendo, em atualizações segundo a segundo. É uma máquina de inferência mais do que uma máquina perceptiva. Os estímulos externos são integrados em um mapa mental, previamente construído por memórias e experiências prévias para formatar a concepção do mundo coerente e compreensível. O resultado é brilhante, já que conseguimos interagir ordenadamente com o nosso meio. Mas às vezes nossas deduções são imprecisas, ainda que nossas vívidas sensações nos façam pensar o contrário. Esta coerência mentalmente construída na discordância entre percepção e realidade é uma fonte de erros para além do efeito McGurk.

E se o assunto é erro, enfio nesta crônica um tema que não resisto, lá vou eu. Há motivos reais para desconfiar das forças que movem os interesses em vender remédios. A partir desta simples constatação, fica fácil inferir que a indústria farmacêutica é uma vilã, que inventa bases físicas e biológicas para as doenças mentais para justificar o lucrativo comércio de fármacos.

Essa armadilha cognitiva provavelmente é o centro dos pensamentos que desfilaram neste vídeo do UOL. Até há uma referência perdida a uma compilação de estudos –a chamada metanálise– que aponta a ineficácia da antidepressiva fluoxetina contra a depressão. A inferência arraigada da bandidagem farmacêutica, e mais outros viesses, eclipsaram todas as provas, sobre os reais benefícios da fluoxetina que liquidam a duvidosa metanálise.

O vídeo fofo tem clichês bem aceitos e superficiais e também ajuda a estigmatizar pessoas que usam psicoestimulantes para tratarem o seu transtorno do déficit atenção e hiperatividade.

Fica a lição que podemos obter da dupla de psicólogos Harry McGurk e John MacDonald: é melhor não acreditar em tudo o que ouvimos, e vez ou outra, desconfiarmos do produto final de nossas conclusões.


Referências

McGurk H, MacDonald J. Hearing lips and seeing voices. Nature. 1976 Dec 23-30;264(5588):746-8. doi: 10.1038/264746a0. PMID: 1012311

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Iqbal, Z.J.; Shahin, A.J.; Bortfeld, H.; Backer, K.C. The McGurk Illusion: A Default Mechanism of the Auditory System. Brain Sci. 2023, 13, 510. https://doi.org/10.3390/brainsci13030510

Anne-Marie Muller, Tyler C. Dalal, Ryan A. Stevenson,Schizotypal personality traits and multisensory integration: An investigation using the McGurk effect,Acta Psychologica,Volume 218, 2021, 103354, ISSN 0001-6918, https://doi.org/10.1016/j.actpsy.2021.103354.

Tiippana K, Andersen TS, Sams M. Visual attention modulates audiovisual speech perception. European Journal of Cognitive Psychology. 2004 May 1;16(3):457–72.

Kraus MW. Voice-only communication enhances empathic accuracy. Am Psychol. 2017 Oct;72(7):644-654. doi: 10.1037/amp0000147. PMID: 29016168.

Getz LM, Toscano JC. Rethinking the McGurk effect as a perceptual illusion. Atten Percept Psychophys. 2021 Aug;83(6):2583-2598. doi: 10.3758/s13414-021-02265-6. Epub 2021 Apr 21. PMID: 33884572.

https://www.youtube.com/watch?v=WGnf2q-5cY8

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