Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

A odisseia contra uma rara causa de dor

Até 6% da população mundial será afetada por uma doença rara

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Doenças raras são comuns, o acaso explica. Há um risco de um erro incomum estar em ao menos um dos milhares de genes de ao menos uma de nossas bilhares de células; uma chance que se renova a cada célula nova.

Espalhados por aí existem venenos, toxinas, radiações, microrganismos, que, por azar seu, podem encontrar você e quase mais ninguém. Estima-se que de 3,5 a 6% da população mundial será afetada por uma doença rara. Metade das pessoas desse vasto grupo jamais receberá um diagnóstico adequado. A outra metade de diferente destino provavelmente percorrerá uma epopeia repleta de exames desnecessários e de tratamentos inúteis até o diagnóstico correto.

Ulisses é um homem comum, empregado em uma função comum e se preparava para a cerimônia de seu casamento, que terá um roteiro comum. Ele contraiu um resfriado, como todos nós um dia já contraímos e em outro dia contrairemos de novo. Mas, dessa vez, há algo diferente. Após a cura, ficou uma dor persistente atrás de sua narina direita. A dor piorou e se espalhou para o lado direito da face e da testa.

O jovem homem tornou-se figura constante em clínicas e prontos-socorros. Embrulhados em promessas de cura, recebia injeções ou prescrições de algum fármaco, mas sempre vinha a frustração. Por duas vezes recebeu tratamento contra sinusite, embora nenhum exame tenha sugerido essa complicação.

Lá se iam meses de dor. Não há paciência que resista. Topou ser internado em um hospital, para novos tratamentos, entregues em novas posologias, e para realizar rapidamente os exames julgados necessários. Os resultados dos testes eram interpretados como normais e não se descobriu o que se passava de errado na cabeça de Ulisses. Mesmo assim, a dor foi reduzida pelo efeito do remédio oxicodona, que passou a usar diariamente. A oxicodona era o canto da sereia.

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Getty Images via BBC

Essa droga pertence à classe farmacológica dos opioides, tal qual a morfina. Uma categoria de analgésicos que vem causando um incrível número de mortes por overdose nos Estados Unidos; estimam-se 165 mil neste século. No final dos anos 1980 e início dos 1990, argumentou-se, "em grande parte por razões morais", que os opioides deveriam ser prescritos para a dor crônica. O modelo de uso foi inspiração do sucesso dos opioides no tratamento da dor aguda e da dor no final da vida.

A Sociedade Americana de Dor, em 1996, emitiu uma declaração muito influente, um marco histórico, que afirmava serem os opioides seguros e eficazes para o tratamento da dor crônica e que o risco de dependência era desprezível. Porém, essa sociedade recebeu vencimentos próximos a US$ 1 milhão de indústrias farmacêuticas em corrupção aos seus propósitos. Acusada de ser conivente com a pior epidemia de drogas nos EUA, a Sociedade Americana de Dor fechou suas portas em 2019.

Mas Ulisses teve náuseas e tontura com o remédio, aliás já nem percebia o potente efeito analgésico como fora nos primeiros dias de tratamento e desistiu da pílula. Enjoado e furioso, foi internado pela segunda vez em outro hospital. Não tardou para um médico da equipe que lhe atendia pensar que a dor seria psicológica, logo, seria útil uma avaliação psíquica.

Entra em cena a psiquiátrica Alice. Chamada ao caso ela avaliou Ulisses e fez seus julgamentos. Saindo do quarto dele, encontrou o neurologista responsável pelo paciente: "Estou com pressa, vou até o restaurante tomar um chá e comer umas bolachas e já partirei para o consultório, já tem paciente me esperando. Venha comigo para eu lhe falar do Ulisses". E sumiu rapidamente.

O neurologista ia atrás, aos largos passos, só não a perdeu de vista porque conseguia enxergar o coelho, estampado na bolsa da colega, até Alice sumir escadaria abaixo. O neurologista a encontrou no restaurante. Ela lembrou que Ulisses tinha planos, vontades e dizia sobre seu passado com prazer. Algo que se perde em deprimidos. Ouvindo aquilo, o neurologista se sentiu pequeno, ignorante a cada gole de chá e a cada palavra de Alice. A psiquiatra se despediu: ache uma causa para a dor e trate dela de acordo.

No dia seguinte, o médico abriu em seu e-mail o editorial de uma revista neurológica; por uma rara coincidência, um dos tópicos trazia a descrição de um caso clínico que o fez lembrar da situação de Ulisses. Finalmente o diagnóstico. Ulisses possuía uma alteração comum em seu septo nasal, um calinho ósseo. Quase nunca essa mínima e frequente anormalidade causa qualquer sintoma. Possivelmente o resfriado alterou a sensibilidade local e fez a gênese da dor. A razão de aquele resfriado específico ter causado a dor é uma questão sem resposta.

Uma médica otorrinolaringologista operou-o e corrigiu o problema. Ulisses foi curado de uma rara dor, causado por coisas comuns.

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