Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Luís Francisco Carvalho Filho
Descrição de chapéu Folhajus Rita Lee

A lei no Brasil ainda gosta de punir inutilmente

'De longe é formosa, mas fazer maldade é seu ideal', cantaria Rita Lee

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Em agosto de 1976, quando policiais invadiram a casa de Rita Lee, cumprindo um estranhíssimo mandado de busca para "descobrimento de tóxicos" e apreensão de eventual "substância entorpecente", vigorava a lei 5.726/71, que não fazia distinção entre traficante e usuário.


Nove dias depois, a artista seria condenada a um ano de reclusão por conta de três pontas de baseado, dez sementes e resquícios de maconha, menos de 3 gramas, uma quantidade irrisória.

Depois de passar pelo Presídio do Hipódromo e pela Penitenciária Feminina, foi concedida pelo juiz da sentença a prisão albergue domiciliar. Mas Rita Lee teria que observar algumas normas de conduta: "recolher-se" entre 19h e 7h, não exercer trabalho noturno, não frequentar lugares de duvidosa reputação, não ingerir qualquer espécie de bebida alcoólica.

O promotor do caso não se conformou com o albergue domiciliar e recorreu ao extinto Tribunal de Alçada Criminal pela "acentuada perigosidade da ré", por facilitar a "difusão do vício em sua casa", por gerar "repercussão negativa sobre a mocidade".

Aos 28 anos, Rita Lee era uma estrela. Além dos Mutantes e da Tropicália, já havia gravado com a banda Tutti Frutti, entre outros sucessos, a canção "Ovelha Negra".

Dois meses depois, Ernesto Geisel (1974-1979) sancionou a lei 6.368/76, que estabeleceu pena menos grave para posse de droga para uso próprio (seis meses a dois anos de detenção). Em junho de 1977, o tribunal manteve a condenação de Rita Lee, por maioria de votos —o lendário juiz Ranulfo de Melo Freire (1924-2020) votou por sua absolvição—, adaptando-a às novas regras. A pena estava cumprida e Rita Lee alcançou a liberdade.

Nesse meio tempo, José Carlos Dias e Arnaldo Malheiros Filho (1950-2016), talentosos e combativos advogados de Rita, esforçavam-se para manter acesa a chama da sua carreira musical e conseguiram flexibilizar o manual de conduta da prisão albergue.

Rita Lee, ainda que presa, viajava, ensaiava e subia aos palcos de diversas cidades, trocando o dia pela noite. Em outubro de 76, em Curitiba, no Círculo Militar, o show "Entradas e Bandeiras". Em novembro, gravação de número para o "Fantástico". Em dezembro, ensaios para apresentação no Corinthians.

Depois de Rita Lee, outros artistas seriam presos e estigmatizados por posse de alguma substância proibida e o país promoveria, por esses mesmo motivo, o encarceramento em massa de gente anônima e indefesa.

Herança nefasta do primeiro mandato presidencial de Lula, a lei 11.343/2006 sugeria solução inovadora por, teoricamente, não ameaçar o usuário com prisão. Mas há distância entre intenção e gesto. O texto confere a policiais e juízes reacionários, sem estabelecer critérios objetivos, o poder de determinar se a droga se destina mesmo a consumo pessoal.

Em 2005, havia no Brasil 361 mil presos. Em 2016, o dobro: 726 mil. Em 2005, o tráfico de drogas era responsável por cerca de 13% da população carcerária; em 2016, por 28%. Com mulheres, a estatística é mais extrema. O crime praticado por 62% das presidiárias estava relacionado a tráfico.

Estima-se que hoje um em cada três presos sejam "traficantes" —falsos ou verdadeiros.

O Brasil ainda gosta de punir inutilmente. Jovens e negros são as vítimas preferenciais da engrenagem judicial racista, moralista e corrupta de prender e condenar.

"De longe é formosa", cantaria Rita Lee, mas "fazer maldade é seu ideal".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.