Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Reflexões niilistas sobre política

Não há vida sem a podridão da política; o gole amargo desse cálice cabe a todos

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Toda política é podre. Convido o leitor a fazer comigo uma reflexão ontológica sobre a política. Reflexão ontológica é um modo de se dizer quando nos colocamos a pensar sobre o ser de alguma coisa. Aqui, no caso, o ser da política. O motor afetivo dessa reflexão é o niilismo. O niilismo é o nome da desesperança no vocabulário filosófico sofisticado.

Calma. Dizer que algo é podre não é a mesma coisa que dizer que esse algo seja desnecessário. Você e eu sabemos muito bem, por exemplo, que, do ponto de vista fisiológico, muitas coisas nos organismos são podres, mas nem por isso menos necessárias. Algumas delas, que primam pela podridão, podem levar o organismo ao colapso generalizado caso não sejam produzidas adequadamente.

Não é à toa que tantos pensadores políticos clássicos, de Platão a Morus, de Rousseau a Marx, tenham desenhado cenários utópicos onde a podridão da política seria excluída porque tornada desnecessária. 

Talvez uma das maiores causas de desespero da humanidade (ou de humilhação ou humildade) seja reconhecer a nossa necessidade da política. Mas, essa mesma necessidade imperiosa não a faz menos podre, pelo contrário, a faz mais podre, em muitos casos.

Ilustração
Ricardo Cammarota/Folhapress

Não é incomum que a maior humilhação dos seres humanos se revele, justamente, quando estes estão sob a tutela de algo podre, mas necessário, algo que os intoxica, mas que se impõe como violência constitutiva da vida comum.

Como no passado, continuamos a ter de escolher entre duas situações desagradáveis. No passado a escolha era entre morrer sob a espada na nação vitoriosa ou se tornar escravo da nação vitoriosa. Hoje, escolhemos entre a podridão da política ou o caos do seu vácuo —que nunca existe porque a política odeia o vácuo.

Infelizmente, a opção Jon Snow (quem não viu a série “Game of Thrones”, eu sinto muito), tão sedutora, não está ao alcance da maioria esmagadora da humanidade. Jon Snow, ao final da série, revela-se um herói da utopia estoica (se você não sabe o que é estoicismo, procure no Google): mandar o jogo dos tronos às favas e viver entre selvagens mais confiáveis é praticamente impossível no mundo real.

Nós somos obrigados a depender de políticos mentirosos, incompetentes, somos obrigados a votar neles, a nos iludir com eles, a ter esperança naquilo que, em algum momento, federá.

Outra coisa a ser esclarecida é que nem todo político é em si podre. Muitos entram na política com boas intenções. Acreditam que o sistema pode ser domado. E não se apresse em achar que me refiro à politica brasileira enquanto tal. Somos atrasados inclusive no modo de realizar a podridão da política. 

Um dos ganhos de uma política mais competente é feder menos e gerar uma sociedade que dependa um pouco menos desses agentes que geram fedor.

Alguns países têm, seguramente, mecanismos de reciclagem do lixo político para padecer menos com os abcessos infecciosos que a política causa em nossas vidas. E essa natureza maligna da política não se limita unicamente à política partidária nos governos. Sua natureza degenerada afeta universidades, escolas, tribunais, sindicatos, Ministério Público em geral, empresas, ONGs, igrejas, o esporte, enfim, todo lugar em que a violência deve ser organizada. 

É justamente a necessidade da organização da violência que pede a ação política. E é precisamente essa ação política que em algum momento exalará o fedor de tudo o que deve apodrecer para que os sucessos políticos e dos políticos se concretizem.
 

E essa breve reflexão ontológica acerca do ser da política não privilegia direita ou esquerda. Eis um lugar em que não há diferença de fato entre os polos ideológicos. 

Ambos são igualmente podres. A democracia não é menos podre do que os regimes totalitários nesse aspecto. A diferença entre os dois é que, na democracia, os esquemas de controle do poder diluem o poder único de cada agente ou instituição. Na democracia, a podridão é, também, democrática. Nesse sentido, na democracia, a podridão fica, de certo modo, empacotada para presente por conta da sua natureza idealizada. Os próprios cidadãos soberanos na democracia são chamados a participar na podridão sistêmica, como parte da realização desta mesma podridão funcional.

Mas a falha inexorável de toda reflexão niilista (Nietzsche bem o sabe) é que ela é, em si mesma, utópica. Nunca viveremos sem a podridão da política. O gole amargo desse cálice cabe a todos nós.

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